22 dez 1991

Máquina fedorenta, desconfortável e ridícula

Que era? O automóvel, quando apareceu, há cem anos. Hoje, máquina inteligente, continua exercendo fascínio, sobretudo nos jovens, mas é também considerado o grande vilão que torna as nossas cidades verdadeiras sucursais do inferno. Nem a ficção consegue descrever o tormento de um engarrafamento de fim de semana, sobretudo nesta época do Natal.

Nesta quadra do ano, com as festas do Natal e do Ano Novo coincidindo com o verão, por mais paralisante que seja a recessão, as grandes cidades brasileiras num dado aspecto oferecem um espetáculo muito próximo do que acontece nas grandes cidades do Primeiro Mundo. Lá e cá, aliás, está aberto o processo instaurado em torno do que seja o conceito de cidade – local em que em tese se concentram milhares ou milhões de cidadãos para um convívio civilizado, com direitos e deveres definidos pelo ideal da igualdade da cidadania.

Há pouco tempo, a revista Newsweek abordou o tema e foi fundo no diagnóstico de um mal-estar que não é hoje privativo de nenhum país. Há características negativas que são comuns a todas as metrópoles que, neste ocaso do século 20, já não sabem se devem se orgulhar do que fizeram e conseguiram, ou se é o caso antes de chorar sobre as deformações e monstruosidades a que chegaram. Uma conclusão parece certa a todos os que pensam com isenção e sabedoria: a obsolescência da cidade, tal como a entendemos e como a vimos construindo a partir de uma modernidade tiranizada pela industrialização e pela massificação.

O próprio Henry Ford acreditou piamente que o automóvel, posto ao alcance do maior número com a linha de montagem, ia servir sobretudo à evasão. Sugeria muito mais um passeio ao campo do que uma ida ao escritório. Mais tarde o automóvel entrou pelos anos 20 e 30 como símbolo de status. A escolha de um carro tem a ver com secretos desejos inconscientes, em que é preciso tomar em consideração a potência do motor e o design da carroceria. Não foi à toa que Carlos Drummond de Andrade, numa definição de sabor machista, chamou o carro de “máquina de conquistar mulheres”.

O tema é inesgotável. Mas o que se pergunta hoje por toda parte é se já não está chegando ao fim a era do transporte individual. Ainda outro dia, a propósito da reunião de cúpula em Roma, a cidade viveu um momento de caos. Por mais que se esforçasse o prefeito Carmelo Caruso, implorando paciência e tentando convencer os romanos de que deviam sentir orgulho pela preferência dada à sua cidade, a população só faltou entrar em choque com o gigantesco aparato policial. Tudo porque se mudou o trânsito em várias ruas e se impediu o acesso a certos locais considerados de segurança máxima.

Murilo Mendes, que viveu em Roma seus últimos anos, adorava a Itália. Quando se instalou na via del Consolato, não escondia a satisfação que lhe dava o privilégio de ali viver. Seus últimos anos foram amargurados pela brutal transformação da Cidade Eterna, no que ele chamava, deprimido, de “imensa garagem”. Se dependesse do poeta, o automóvel seria banido da Itália como um réprobo, uma engenhoca diabólica que, selvagem, estragou o prazer de viver segundo um padrão civilizadamente humano. Como diria o Amanuense Belmiro, em Paris é a mesma coisa.

Essa contradição já estava no automóvel assim que apareceu. Claro, não era tão visível. Quando Georges Clemenceau via o protótipo da viatura que os alemães Benz e Daimler apresentaram ao kaiser, não teve dúvida de que se tratava de algo “fedorento, desconfortável e ridículo”. Não era um veículo, mas, sim, um traste destinado ao mais rápido esquecimento. Serviria quem sabe para a guerra. Em 1875, o menino Henry Ford tinha 12 anos e viu uma locomotiva que andava sozinha. Estava em Detroit na companhia do pai. Ficou assombrado ao ver que um veículo podia andar sem tração animal. Foi ali que o futuro big boss começou a sonhar com um tipo de transporte individual que fizesse o ser humano feliz a partir da conquista da autolocomoção.

Em poucos anos, estávamos em plena “carrolatria”, a religião do automóvel. O próprio Henry Ford teorizou a respeito e vendeu ao mundo a certeza de que não é a riqueza que leva ao automóvel, mas o contrário. Ou seja: uma nação só é rica quando tem automóveis. Foi esta a ideologia desenvolvimentista que entrou no Brasil com JK nos anos 50. O primeiro carro brasileiro, ainda que fabricado em boa parte lá fora, mas montado aqui, trouxe um estado de euforia que contribuiu para a autoconfiança que se apossou do brasileiro. Se podíamos fabricar automóveis, podíamos ser afinal uma nação rica e desenvolvida. E começamos pelo Volkswagen, que, ligado a Hitler, foi tido e havido como máquina diabólica.

Ninguém também nega que se deu ali um passo positivo. Bastaram três décadas, porém, e hoje pouco mais, para nos pôr em confronto com o espetáculo que nesta época do ano se torna hiperbolicamente visível: as estradas entupidas, as ruas entulhadas, a que se juntam os milhares de acidentes com vítimas e os fantásticos engarrafamentos. Julio Cortázar abre o seu livro Todos los fuegos el fuego com o conto “La autopista del sur”, que Godard levou para o cinema. É a história de um colossal engarrafamento que não parece terminar mais nunca. Na ficção (e na realidade), aconteceu em Paris. Mas podia e pode acontecer em São Paulo, via Anchieta abaixo, ou na via Dutra.

Aliás, não é diferente a descrição que tantas vezes se tem feito dos engarrafamentos nas cidades brasileiras. Basta ver “Uma pausa na serra”, crônica de Frederico Branco no Jornal da Tarde, em que o clima reinante é parecido com o do conto de Cortázar, enquanto “todos são solidários no engarrafamento”. No Rio, com a avenida Brasil escaldando no verão, quando não está submersa pelas águas, o espetáculo ganha requintes de crueldade com que nenhuma deletéria imaginação poderia sonhar nos “anos dourados” de JK. Na região dos lagos e na serra, aos perigos do tráfego pesado, dos acidentes fatais, junta-se agora o fantasma dos assaltos. O policiamento é praticamente nulo, mesmo nas horas “de ponta”, quando o rush é previsível a partir do feriadão com data marcada. Na França para um fim de semana comprido se diz que se faz le pont, mas é uma ponte em que ninguém anda. Ou só passa a passo de cágado.

Em qualquer época do ano, todo mundo observa no Rio que a sexta-feira é um dia de especial excitação automobilística. A semana inglesa começa cada vez mais cedo. Um maior número de carros sai à rua, é o que se diz. Não deve ser diferente em Belo Horizonte, em Porto Alegre, Florianópolis, em Salvador, ou no Recife. O automóvel é hoje um monstro onipresente, que continua a despertar fascínio, mas já aparece aos olhos lúcidos de muita gente como a máquina maldita. Máquina do diabo, chamou-a o francês Denis de Rougemont. Há anos, fez-se em Londres uma curiosa pesquisa: de todas as trapizongas da era industrial, o que devia ser “desinventado”? O automóvel apareceu num dos primeiros lugares, o que demonstra que o inglês continua excêntrico e sensato. Aliás, assim que foi inventado o automóvel, na Inglaterra houve um movimento para impedir a sua entrada na ilha.

Daqui a pouco, em 1992, vamos celebrar os 70 anos da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Em 1922, o automóvel era para as cabeças abertas dos modernistas (e dos futuristas) o máximo de progresso e de beleza. Era o símbolo do conforto e da velocidade, da grande conquista individual. Não foi por acaso que a revista do Modernismo se chamou Klaxon, buzina em francês. Buzinar não era feio. Era elegantérrimo, tanto para o amigo como para a namorada. Ter carro era sinônimo de ser feliz. E os carros não passavam de fedorentas carroças, como hoje pode dizer o Collor, com o adjetivo tomado ao Clemenceau. O automóvel progrediu muito nestes 70 anos, não resta nenhuma dúvida. Virou uma máquina inteligente, computadorizada. Velocíssima e lindíssima.

O que se pergunta é se não se tornou ainda mais maléfica. Antes dos modernistas de 1922, tomado também de entusiasmo, Olavo Bilac importou um carro. E João do Rio já exaltava o automóvel. Tinha, porém, a cautela de, em 1911, chamá-lo de “aparelho de morte imediata”, quando andava a três quilômetros por hora. Seu entusiasmo pela “carrolatria” era tamanho que o automóvel a seu ver seria “a língua do futuro” e “o grande sugestionador”. Hoje sabemos que é sobretudo o grande, o monstruoso, o infernal congestionador...

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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