Não deixa de ser curioso que a morte de Marlene Dietrich ocorra no momento em que Los Angeles está em foco. A tremenda baderna projetou a cidade na tela de todo o mundo. Quando por lá desembarquei outro dia, a cidade estava tensa, a respiração ofegante. O aeroporto às moscas. Algumas horas antes tinham começado os distúrbios, num conflito que, mais que racial, era de fato um confronto social.

Se ainda há um sonho americano, o american dream, a sua representação por certo ali não estava nas ruas de Los Angeles. Muito menos se deixava entrever em Hollywood, ou em Beverly Hills. A fúria destruidora chegou até lá, sim. Umas poucas lojas, riquíssimas boutiques, tinham sido violadas. Num átimo, detritos e despojos foram varridos. Era preciso fechar aquelas feias feridas. Horas depois, mal se podia adivinhá-las por trás dos elegantes tapumes.

Cumpria esconder depressa a feiura selvagem da realidade. De sua injustiça. E de fato não só se escondeu como se poupou da brutal agressão aquele trecho privilegiado. O riot não chegou até Sunset Boulevard. Lá estavam, sossegadas, ruas limpíssimas, as mansões milionárias. E lá estava, sobretudo, a sede da fantasia que deu origem à universal mitologia deste século. Pairam ali, intangíveis, acima da vulgar controvérsia das ruas, as belas divas que fascinam o mundo.

O cinema tornou imortais os seus fantasmas. Pouco importa que a casa de Marilyn Monroe pareça um túmulo, em que jaz a silhueta de uma pobre moça infeliz. Ali, no coração de Hollywood, para uso e consumo de todo o mundo, reinam estrelas e astros. Tudo é luxo, calma e volúpia. Felicidade, ainda que só aparente. Foi lá, num night club de Hollywood, que o Vinicius viu a sua musa. A namorada por quem se apaixonou aos 17 anos. E com ela se casou em sonho, como ele próprio conta numa crônica de 1951. O anjo azul reinava absoluto sobre o coração do poeta.

Há dois anos, morreu a outra deusa que também entrou devastadora, pelos olhos e pelos corações de todo o mundo — Greta Garbo. A favorita de Carlos Drummond de Andrade. Como Marlene Dietrich, a Garbo viveu bastante para saber que a beleza é fugaz. Uma e outra se recolheram à mais fechada solidão. Trocaram as luzes do vedetismo pela sedução do deserto. Sincrônicos, o deserto pode estar em Paris, como a brutalidade do motim pode chegar até Hollywood.

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