Sem mais aquela, no jantar simpático, a conversa fluindo, a frase caiu como um petardo: a família é uma instituição do século 19. E acabou. Não existe mais. A pequena pausa tornou mais nítido o estremecimento dos talheres e dos cristais. Nenhum pasmo ou assombro, mas a voz, agora solitária, se sentiu no dever de esclarecer: pelo menos a família tal como a conhecemos, nós mais velhos. Foi aí que pousou na linda mesa uma nota de melancolia.

Essa mancha nostálgica na alvíssima toalha podia resultar do tom com que foi dita a frase. Podia estar na voz que a pronunciou. A senhora vinha calada até o momento em que abriu a boca e, convicta, disse o que disse. Via-se que não era uma frase improvisada, de efeito. Era antes densa, carregada de experiência e reflexão. A nota melancólica podia estar no apêndice que nos colhia a todos na mesma rede: pelo menos para nós mais velhos.

Nós mais velhos nos olhamos, perplexos. Oh, Senhor, como é que deixamos que isto acontecesse? Nenhum de nós escapava daquela cilada. Ou daquela maldição. Ninguém podia recusar a sua parte com a polidez com que se recusa uma fruta. Uma senhora tossiu, discreta. O decano da mesa teve um engasgo imperceptível, que, todavia, se denunciou no esforço de contê-lo. Outra senhora iniciou o gesto de quem ia se retocar.

Bem-dotada e escolada, a hostess retomou sem emenda a historinha de sua neta. Está uma moça, a neta, e muito bonita. A historinha se iluminou com a beleza da moça e, sejamos justos, com a classe com que a avó dava os detalhes mais insignificantes. Na história, um casinho banal, a moça comia uma pera. Fosse maçã e seria símbolo ou metáfora. Mas era uma pera. E a avó, realista, se mantinha verazmente objetiva.

Já nem sei o que a menina fazia com a pera. Tão bonita a moça, e comeu uma pera. Digamos que comeu. Todos nós mais velhos já um dia comemos uma pera. E quem sabe até em família, essa instituição do século 19. Mais um pouco e a conversa prosseguiu, sem pera, nem neta, nem moça bonita. Um jantar comme il faut. Como diríamos, nós mais velhos, a essa altura espectros perdidos nas entranhas velhíssimas do século 19. Foi quando chegou a luz, perdão, a neta. Estávamos todos salvos. E felizmente devolvidos ao século 20.

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