A crise nacional aí na cara da gente fervendo no freezer (dá pra entender?) e o meu amigo me telefona do botequim do Lili. Entrou numa parada com toda a roda de cervejistas e quer que eu desempate a questão. O caso é o seguinte: cego sonha? Sonha com imagens? E sonha em cores? Cego de nascença, bem entendido. Domingo, manhã tranquila, e eu com este problema.
Não me perguntem por que teria de ser eu o juiz dessa controvérsia vadia. Vou em busca do telefone de um amigo oftalmologista, mas hoje é domingo e só tenho o número do consultório. Por que não recorre ao Instituto Benjamin Constant? A discussão pegou fogo no botequim do Lili. E por falta de combustível não se apaga tão cedo. Tento esquecer, mas a pergunta me persegue.
Está comigo agora o nó cego. E eu obcecado em casa, feito pateta. Falar em cego, li outro dia o Apólogo brasileiro sem véu de alegoria, do Antônio de Alcântara Machado. O trenzinho de Maguari para no meio da noite. Os passageiros protestam. A demora desencadeia no escuro um motim. Vem depois o inquérito para apurar as responsabilidades. Nenhuma dúvida: a causa da baderna foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olha firme nos olhos do passageiro e pergunta: quem encabeçou o quebra-quebra? Ansiosa expectativa dos presentes e o inquirido revela: foi um cego! A testemunha quis jurar sobre a Bíblia, mas foi recolhida ao xadrez porque com a autoridade não se brinca. Já li dez vezes essa história e acho que ela é cada vez mais brasileiramente engraçada. Há por aí mil situações para aplicar el cuento.
A propósito, eu tinha anotado um texto francês que me lembrou esse conto. “Vive la lumière!, dit cet aveugle”. Viva a luz, diz o cego. Por que o cego não poderia dar viva à luz? Aí me lembrei do Jorge Luis Borges e fui ler a sua conferência sobre a cegueira. Alguns grandes poetas foram cegos — Homero, Milton, o próprio Borges. Shakespeare imaginou o cego contemplando a escuridão. Borges contesta Shakespeare e tem autoridade para tanto. Era poeta e cego. Nisto, o telefone toca. De novo o meu amigo. Mas agora é outra discussão: o Collor cai ou não cai?