19 abr 1992

O doido que deu o próprio pescoço à forca

Era um século de mudança. A pregação do Iluminismo resultou na Revolução Francesa de 1789. Independente, a União Americana provava que a República era viável, com cidadãos livres. No Brasil e na capitania das Minas Gerais, não havia imprensa, nem universidade. A metrópole, insaciável, só pensava no ouro, que foi financiar a Revolução Industrial na Inglaterra. Um homem não se conformava e deu a vida por um sonho: Joaquim José da Silva Xavier.

Enquanto durou no Brasil a monarquia, reinou sobre o Tiradentes um silêncio tumular. Preso com um bacamarte, na rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, no centro do Rio, o Alferes era um perigo ao inimigo do regime, da Coroa e da família imperial. Um subversivo sem compromisso com a ordem social estabelecida. Queria botar abaixo os valores dominantes, acabar com a monarquia, romper com Portugal, proclamar a independência do Brasil e transformá-lo numa república de cidadãos livres, o que implicava abolir de imediato a escravidão. E ainda pensava em instituir o ensino livre, fundar a universidade.

Tudo isto andava na cabeça do Tiradentes há dois séculos. Agora, terça-feira, 21 de abril, o Brasil estará celebrando a memória do chamado Protomártir da Independência, ou seja, 200 anos de sua morte infame na forca, em pleno Campo da Lampadosa, hoje Praça Tiradentes, no Rio. Foi um festão, para o qual as autoridades convidaram o povo. A festa não se limitou ao espetáculo montado na praça com requintes de crueldades. Espalhou-se pelo Brasil e subiu a montanha mineira, para também lá, nas Minas, sobretudo lá, todo mundo se rejubilar com o fim do maluco que tinha sonhado em pôr fim ao regime colonial. Servisse de escarmento, para que ninguém mais ousasse levantar a cabeça contra a metrópole. 

Se você deseja celebrar a memória do Tiradentes, nada melhor do que ler os Autos da devassa da Inconfidência Mineira. A 1ª edição começou a aparecer em 1936 e só acabou dois anos depois, em 1938. Publicação oficial do Ministério da Educação, começou no regime da Constituição de 1934, numa hora de ascensão do nazifascismo em todo o mundo, e acabou depois do golpe de Estado que inaugurou o Estado Novo, quando a república e a liberdade tinham aqui entrado em colapso. Uma nova edição dos Autos da devassa só veio a público em 1976. De novo veja a ironia do destino: o Brasil se achava sob o arbítrio do famigerado AI-5.

Basta pensar nessa triste coincidência para avaliar a extensão do tresloucado sonho do Tiradentes. Ele tinha os olhos postos nos Estados Unidos da América e estava convencido de que o Brasil podia ser aqui uma república de igual importância, com um brilhante futuro de riqueza, prosperidade e justiça. Duzentos anos depois de sua morte, o que me pergunto é se o Brasil não sente um mínimo de remorso por estar ainda tão longe do delírio do pobre Alferes. Pensando no que tem ocorrido nestes 103 anos do período republicano presidencialista, uma boa parte do sonho do herói continua de uma gritante atualidade.

Não vamos exagerar e dizer que tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Lá isso, não. Para sentir a diferença de anos-luz que vai entre a colônia de 1789 e o Brasil de 1992, basta ler a sentença que condenou os réus que participaram da Inconfidência. Longe de manter, ou até de apenas simular isenção, o acórdão dos juízes da devassa, datado de 18 de abril de 1792, é um documento desses que faz corar um frado de pedra. A Assembléia Legislativa do Estado do Rio teve a feliz ideia de editar agora a sentença que é um vergonhoso libelo contra os réus e uma verbosa e nauseante apologia de puxa-saquismo.

O processo era na verdade uma farsa. Quase dois anos antes sua majestade D. Maria 1ª, a Rainha Louca, já tinha expedido duas cartas régias com a condenação dos réus. O único que subiu ao patíbulo e morreu da maneira que se sabe, para em seguida ser esquartejado e ter a sua cabeça exposta em Vila Rica, foi Joaquim José da Silva Xavier. Quem era esse maluco? Sim, um doido varrido. Até o seu advogado de defesa pediu clemência para ele na base de que se tratava de um insano. Na verdade, porém, à medida que a história do Brasil vai conhecendo o herói, na base da pesquisa e da documentação, sua figura cresce e se agiganta, ao lado da fragilidade dos seus companheiros de conspiração, todos poupados na hora da forca.

Entre dezenas de bacharéis, magistrados, intelectuais e sacerdotes, para alcançar a liderança que alcançou, Tiradentes devia ter qualidades e virtudes que o distinguiam do comum dos homens. Filho de um português com brasileira, órfão desde cedo, ao contrário dos que o cercavam, não tinha títulos, nem estudos regulares. Até o apelido de Tiradentes foi mantido e divulgado com a intenção de levá-lo à chacota. Não era para ser levado a sério. No fundo, era um pé-rapado, que de seu tinha a inteligência e os dotes morais, em particular uma indômita e serena bravura, confirmada durante o processo e na hora de sua morte.

Visto de hoje, o episódio da Conjuração Mineira se explica em parte pela formação social de Minas Gerais. Só numa civilização basicamente urbana, toda voltada para a exploração do ouro, poderia florescer o ideal que moveu os conjurados, a começar pelo iroso e adoidado Alferes. Pode-se dizer, e já se disse, que a Inconfidência não passou de fato de uma tertúlia de intelectuais. Bastou a delação de Joaquim Silvério dos Reis para que arrebentasse o balão. Vários dos inconfidentes “afinaram”, isto é, temeram a sorte que os esperava e trataram de se inocentar, ou de diminuir a própria participação na Conjura. Já o Tiradentes, depois de uma primeira negativa nada convincente, assumiu a culpa de todos e partiu para a confissão.

Na Minas católica e barroca, sujeita, como todo o Brasil colonial, a uma corte ultraconservadora e tirânica, impermeável a qualquer ideia nova, com horror à ideia de progresso e mudança, não é difícil entender a confissão do Tiradentes e até a delação de Silvério. O terror da autoridade régia obrigou os conjurados ao recuo na hora do inquérito. Cada qual deveria salvar a própria pele, numa sucessão de espertezas e docilidades que não exaltam os réus. Contribuem, sim, para enaltecer o sacrifício do Tiradentes, afinal a única vítima fatal.

Numa psicanálise de galinheiro, é possível que o trauma da Inconfidência tenha deixado marca profunda em Minas Gerais. Segundo Afonso Penna Junior, os mineiros a principio eram só espertos, como exige uma civilização fundada no ouro. Todos espertos, acabaram naturalmente desconfiados... O excesso de autoridade provoca a astúcia. É da lógica. Só a esperteza consegue dar a volta por cima, sem pôr em risco o próprio pescoço. Haja vista o santinho do pau oco. Daí, a natural cautela que há em Minas. Um típico político mineiro, Benedito Valladares Ribeiro, tem neste ano o seu centenário de nascimento. Mineiro de quatro costados, Benedito tornou-se conhecido pela sua astuciosa capacidade de composição. Foi ele quem observou que é fácil ser Tiradentes com o pescoço alheio.

Neste sentido, o Alferes foi de fato um caso excepcional nas Minas do bom senso e da ordem, da política que prestigia as instituições e conserva modos e tradições que vêm de longe. Morto há 200 anos, é literalmente o sal da terra. Um homem que sonhou com um futuro que até hoje não chegou. Mas sem insensatez do seu tipo o que impera é o brejo escuro e torpe de Dona Maria 1ª a seus bem-comportados puxa-sacos. O cortesão é uma fatalidade. Talvez seja até necessário. Mas só um insano pode abalar a montanha, assim como só um grão de sandice fortalece a fé na liberdade e na justiça ― em Minas, no Brasil e no mundo. 

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