18 jan 1992

O ficcionista é criador e prisioneiro de seu universo

Um escritor não consegue fugir do seu tempo. Esta é uma verdade que já foi dita de várias formas cultas e eruditas por ensaístas e críticos. Esta também é sobretudo expressa por prosadores e poetas diretamente envolvidos com o mundo de sua criação. “Somos duplamente prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos” — escreveu Bandeira no Itinerário de Pasárgada.

Essa prisão é de tal forma compulsória que nem o escritor que se quisesse totalmente alienado dela conseguiria escapar. Existimos na dimensão do tempo e o tempo em que estamos mergulhados é parte de nossa personalidade. Ajuda a modelá-la e nela imprime a sua marca indelével. E quanto ao espaço? Ou seja: até onde estamos amarrados ao lugar em que vivemos?

Talvez fosse o caso de perguntar até onde essas amarras nos ligam para sempre ao lugar em que nascemos. Minha resposta não é diferente da que deu Manuel Bandeira no que diz respeito ao tempo. Estamos irremediavelmente presos à circunstância do nosso berço e de tudo que o cerca nos anos de formação. Não tenho nenhuma dúvida de que a criança é o pai do ficcionista, se me permitem a paródia.

O autor de ficção, como o poeta, pode e deve ser reconhecido pelo seu universo pessoal. Trata-se, claro, de uma realidade criada pela força da palavra, do texto, a partir da imaginação. O que se entende por imaginação, por mais criativo que seja o escritor, não está livre das correntes que o prendem à realidade.

Ora, na primeira realidade, na remota infância, até no mistério de uma memória ancestral que remonta a tempos anteriores ao nascimento do escritor, é aí nesse mundo atávico e onipresente que estão as raízes da imaginação criadora. A simples perspectiva do tempo bastaria para deformar essa realidade, que já aparece assim reelaborada aos olhos adultos.

Na minha modesta experiência, sei que esta prisão à fonte da primeira realidade não implica dizer que toda ficção é confessional, ou memorialística. Pelo contrário. Mais do que uma realidade factual, objetiva, o que conta no universo ficcional, o que o assinala e o alimenta, é a meu ver algo subterrâneo e em boa parte inconsciente.

Pouco importa, por exemplo, que o universo de Guimarães Rosa reproduza fielmente o sertão em que ele nasceu e se criou. Pode haver coincidências, deliberadas ou não, segundo Rosa tenha querido ou não reproduzir pessoas, bichos, coisas e paisagens que ficaram nas suas retinas e no seu coração. A partir do momento em que este material se tornou texto, deixou de ter compromisso com a realidade.

Pode com a realidade guardar maior ou menor distância, mas, sendo realidade deformada, é só imaginação. Aí está o universo rosiano, do qual o ficcionista nunca se afastou. E diria que não se afastaria ainda que o quisesse. O que está dito para Guimarães Rosa vale para qualquer outro escritor brasileiro — José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Octavio de Faria.

Vale também para qualquer escritor que, autor de um universo próprio, conseguiu se comunicar com nossa emoção, apesar da distância que separa os dois espaços — o do autor e o do leitor. A ficção dará uma notícia mais exata ou menos exata da realidade que o escritor consciente ou inconscientemente deformou.

Proust pode ser lido como um romance à clef, mas isto nada lhe acrescenta. O que importa é o universo que Proust criou com a sua ficção. Assim como está preso ao seu tempo, esse universo tem também uma indestrutível ligação com o espaço físico em que Proust viveu. A Paris proustiana não tem, porém, compromisso com a Paris real. Para ser universal, ela se desprendeu da realidade e se fez metáfora. Como Joyce por sua vez se desprendeu da Dublin real para criar a Dublin joyciana.

Pela via do amor ou do rancor, da afeição ou do ódio, do sentimento ou do ressentimento, o escritor está situado no seu espaço. Digamos que há uma “locação” fatal, de que o ficcionista não escapa. Quando se diz “machadiano” ou “kafkiano”, mais do que uma referência ao Machado ou ao Kafka, há aí uma alusão no universo criado por eles.

Se há esta alusão, é lícito, senão obrigatório, pensar no Rio de Janeiro e em Praga. Claro que é. Kafka é Praga, como Machado é o Rio. Um analista poderá dizer quanto do Rio real existe no Rio machadiano. E quanto de Praga existe no universo kafkiano. Pode até existir. Mas pode também não existir — porque não é com o mundo objetivo e visível que o ficcionista tem compromisso.

Nada, porém, fará com que um escritor não seja de seu país, de seu espaço, como nada o liberta da fatalidade do seu tempo. O gênio criador consiste em tomar à realidade os elementos com que o escritor cria o seu universo ficcional. Mudem as circunstâncias, mudem os endereços, pouco importa. Pode até mudar a língua, isto é, o instrumento com que trabalha o ficcionista. É o caso de Conrad, por exemplo. O fato de ter escrito em inglês não o desligou do seu mundo, de seu espaço real, de sua fonte polonesa.

Sem essa primeira fonte genuína, atravessada por emoções e fantasmas que o próprio escritor é incapaz de identificar, o texto ficcional não ganha a indispensável espessura que o eleva à condição de obra de arte. De autêntica ficção. Estilo, técnica, composição, construção, toda sorte de truque pode ser bem-vinda na hora de escrever um conto ou um romance. Será, porém, simples divertimento o texto que não tiver o selo desse universo pessoal e intransferível que é a marca do escritor de ficção, tanto quanto do poeta.

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