A mula de Tales data da Grécia antiga. Associada ao nome do filósofo de Mileto, encarna a esperteza malsucedida. Só chegou até nós graças a Plutarco. Carregada de sal, a alimária atravessa um rio. E percebe que a carga derrete e o seu peso diminui. Aliviada, a mula nunca mais quis saber de outro caminho. Sal no lombo, banho de rio e vinha o desafogo.

O dono da mula, que não era um asno, troca as sacas de sal por sacos de lã. Finória, a mula procura o caminho do rio. O resultado é o oposto. Molhada, a carga pesa mais e a mula quase se afoga. Sai do outro lado do rio e se emenda. Nunca mais recorre à velhacaria. Mergulhado na cultura clássica, Montaigne retomou a mula de Tales. E na sua deleitosa língua, tirou da história a óbvia lição moral.

Vindo depois de Montaigne, La Fontaine, zoófilo, tinha por força de incorporar a mula matreira ao seu fabulário. Rimada e metrificada, a mula muda de sexo. Agora é um asno. Aliás, um só, não. São dois. Um vai carregado de sal. O outro leva esponjas. Convenhamos que com esta duplicidade a lição moral fica mais eloquente. O sal se derrete na água e o burro se livra, fagueiro. Já o outro, o das esponjas, muito burro, morre afogado.

Na versão lafontainiana, levam ambos também quem os monta. Seus guias, ou burriqueiros, que são no vernáculo os aniers. O das esponjas luta com a morte até que um pastor o socorra. Mas o burro foi ao fundo e não surdiu. Eis a moral, na tradução de Curvo Semedo: “Guiar por cabeças más / não é um bom portamento; / às vezes a dita de um / faz a desgraça de um cento”. Presumo que o leitor a esta altura já tenha percebido por que trago de tão longe a mula que virou asno.

Exatamente: Collor vem perdendo substância em ritmo cada vez mais acelerado. Derreteu-se a sua autoridade moral. Ele tem hoje tanto poder quanto um Napoleão de hospício. De maneira literariamente mais nobre, digamos que é um personagem de Pirandello. É o “Enrico IV”. Na sátira, há uma nota dolorosa. Mas a vida é o que é, na definição pirandelliana. Só resta esperar que a mula de Tales não arraste na sua desgraça um cento. Ou um milhão. O Brasil afinal não enlouqueceu. Nem merece um desfecho trágico.

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