Falando em crise, a conversa se encaminhou, fatal, para os melancólicos antecedentes brasileiros. O mais velho da roda se lembrava tim-tim por tim-tm como foram aqueles dias de agosto de 1954. A ansiedade da véspera. A densa expectativa que a seu ver já trazia a nota premonitória da tragédia. País monótono, disse o de cabelos grisalhos. Mais um drinque e deslizou para o inventário de 1961.

De novo agosto. Guardava na retina até a luz daquele dia. Ia almoçar no centro da cidade, quando soube. Tamanha surpresa, podia ser boato. No restaurante, entre colegas do foro, tudo confirmado. Tinha ao menos o consolo de não ter contribuído com o seu voto para aquele desfecho. Uma farsa. Ou a guerra civil, disse o outro. A festa lá dentro e aqui no jardim a ciranda das reminiscências. Uma espécie de rodízio alimentava a conversa, que ia e vinha.

Detalhes pitorescos, ninharias curiosas, entre circunstâncias sem nenhum propósito. Um jovem se aproximou em silêncio. Não se interessou pelo fio da meada e logo se retirou. Até que sobramos nós dois. Como tema, 1964. A escolha não foi minha, nem dele. Estava no ar. Duro legado, disse eu, para dizer qualquer coisa. Duro legado, ele repetiu. E pegou com o garçom mais um uísque.

Nenhuma dúvida de que ia retomar o caminho das reminiscências. Vaga relação pessoal, nunca falamos a respeito. Mas tenho notícia de sua coerência. Enquanto olhava para dentro de si mesmo, perguntei se tinha sido preso. E temi ter ficado aquém de sua biografia. Exilado, talvez. Até mesmo torturado. Seu credo de certezas terá sido posto à prova. Os idos de março. Dias inesquecíveis, sim. E então, a meia voz, começou a me contar.

Onda de verão, demônio do meio- dia, seja lá o que for, enfurnou-se no sítio de um amigo. Arrebatado, saiu de circulação. Meio divertido, meio envergonhado, sou agora cúmplice de sua aventura. Cala o nome da moça, criatura ousada. Da crise de 1964 não

ficou registro na sua lembrança. Mas não se esquece do caquizeiro. Adorava os caquis ao alcance da mão. As rubras bagas, dulcíssimas. A moça o desafiava e ria, a boca vermelha como um caqui. 1964, o golpe, dias inesquecíveis. Suspirou fundo e passou a mão nostálgica pela cabeça branca.

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