Estava decidido: nada de bichos. Vou deixá-los em paz. Não quero saber nem da zoologia fantástica do Borges. Mas eu ponho e a realidade dispõe. Tudo começou, vocês se lembram, com um morcego negro. Magno, murcho, vespertilhão, quadrado na capa, capeta, com todo o tisne dos vampiros ‒ eis como o Guimarães Rosa descreve o morcego. Vespertilhão deve ser mais um neologismo, a partir de vespertilionídeo. O Rosa foi sempre inventador de palavra.

Além de vespertilionídeo, nome científico do morcego, vespertilhão sugere esperteza. Soa quase como espertalhão. E aí está Vésper, que é Vênus, com o derivado vespertino. O morcego só sai da toca à noite, quando o sol se põe. E assim vieram à baila cobras e lagartos. Agora, de repente, os porcos são chamados à colação, com o cortejo de seus lugares comuns. Em pleno palácio, a pocilga. Metáfora mais fora de hora e de local. Deus me livre!

Menino, aprendi com o meu tio Quinzinho que o porco detesta porcaria. É o homem que o condena à lavagem e ao chiqueiro. Anos depois, vi com os meus olhos que é verdade. Na fazenda do Herbert Levy, em Campinas, os porcos não refocilavam na lama. Pelo contrário. Eram limpíssimos. Gordos que nem texugo, até o ronco deles era perfumado. De raça nobre, tinham o branco da pelagem alvíssimo.

Descendente do javali, o porco é antes de tudo um bravo. Na Europa o javali merece até monumento. Numa floresta belga, vi várias vezes a estátua imponente. E os caçadores, respeitosos, lhe tiram o chapéu. O javali é o ancestral do nosso porco, que aqui chegou com Martin Afonso de Sousa. Brasileiríssimo, mais que quatrocentão, hoje faz parte da família. Pelo menos em Minas, onde, vivo ou morto, é um senhor personagem

Como é que vocês têm coragem de comer um bicho que conhecem pessoalmente? Foi a pergunta que me fez uma vez o Adolpho Bloch, voltando de uma viagem ao interior de Minas. Porque não rumina e tem o casco fendido, o porco é impuro na Lei Mosaica. Mas muito mais impuro é o morcego, o passarinho do Diabo, como diz o povo. No dialeto mineiro, porco é lombinho, costeleta, pernil, torresmo e linguiça. No mais, é um bom palpite para o bicho. Carreguem no milhar ‒ e boa sorte!

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