Sim, a gente custa a crer. Mas passa como uma sombra. Apenas um sopro. Outro dia, há cinquenta anos, em novembro de 1941, estávamos reunidos num jantar no cassino da Pampulha, em Belo Horizonte. Ainda agora achei o menu e, junto, o discurso do orador que saudou o homenageado. O orador: Murilo Rubião. O homenageado: Fernando Tavares Sabino, que é a assinatura do seu livro de estreia, aos dezessete anos. Achei também o discurso de agradecimento do Benjamim. 

Benjamim era como o Murilo chamava o Fernando desde aquela época. Não sei de onde vinha essa mania de apelidos. O Hélio Pellegrino era um que curtia os apelidos. Curtia e inventava, às vezes dois ou três para a mesma pessoa. O Murilo, por exemplo, sempre foi o Rubionem. Ou o Ecce. Ou o Ecce Iterum. Tudo por causa de um artigo do Benone Guimarães. Tinha este título: "Ecce Iterum Rubionem". Só que o Rubião no caso era o do Machado de Assis. 

Bom para apelido, o Hélio era também muito bom para a imitação. Eu dizia que imitava as imitações do Hélio. Imitando o Murilo não me saía mal. Ele próprio achava graça. Em 1946, veio para o Rio. Eu alugava um apartamento de dois quartos no Posto Seis. Quando o senhorio foi eleito governador de Minas em 1950, levou-o de volta. Sim, o JK. Eu tinha tido ao lado a confortadora presença de um anjo que às vezes pigarreava. Cacoete de tímido, Murilo passava a mão pela calva. Careca desde mocinho, nos retratos está sempre de chapéu. 

Na Folha de Minas, nos botequins e na noite, nosso irmão mais velho era atento e atencioso. Vigiava e orava. Leitor contumaz da Bíblia, era ateu, mas acreditava em Nossa Senhora. Organizadíssimo desde que nasceu, seu arquivo deve se lembrar de tudo. A notícia de sua doença motivou nossa última excursão coletiva a Belo Horizonte. Almoçamos, passeamos na praça da Liberdade e pegamos o avião de volta. Paulo, Hélio, Fernando e eu. Ninguém disse nada, mas no ar pesava aquele opressivo adeus. Murilo tossiu, discreto. 

Só do tempo do Posto Seis, são muitas as histórias. O Paulo divulgou numa crônica a do convidado. Dias e noites, o Murilo calado diante da folha de papel. Até que arrisquei uma olhadela. Uma única frase: o convidado não existe. Era mais um conto.Vi nascer Teleco, o coelhinho. Dromedários, dragões e outros bichos podem ser fantásticos, vá lá. Para nós eram a doce fauna do nosso doce Murilo. Ecce!

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