29 nov 1992

Tempo de esquecer

Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada no livro Bom dia para nascer,  Companhia da Letras, 2011.

Atendi no primeiro sinal. Não, não estava dormindo. Devia ser bem tarde, mas preferi não saber a hora. Se tenho consciência de que o tempo é escasso, aí é que durmo pouco. A insônia não deixa passar a oportunidade. Está à espreita e se instala. No seu caso, havia mais de uma hora que vinha sendo perseguido por aquele fiapo de reminiscência. Na verdade, o que o perseguia era o esquecimento. Não importa, disse. Precisava da minha ajuda.

Tratava-se de reconstituir uma situação que tinha a ver com uma história recente. Primeiro, era necessário mergulhar até o nosso passado em Minas. Operação simples na formulação inicial, foi ganhando uma complexidade assustadora. Detalhe mais detalhe, a sonda caminhava entre sombras. O processo associativo nos distanciava cada vez mais do nosso alvo. Ele próprio era o primeiro a se deter aqui e ali, numa dispersão que respirava angústia.

A ansiedade é contagiosa, adverti. Muito mais contagiosa, concordamos, é a amnésia. Àquela hora da noite, não tinha sentido nos perdermos os dois em tão duro exercício arqueológico. Melhor não mexer nessa camada profunda da emoção. Se não está morta, está enterrada. Entreguemos pra Deus. Boa noite, bom sono. Podia ter voltado ao livro. Mas o verme da inquietação agora me roía a mim. Fui procurar uma revista científica que traz um artigo sobre a memória.

Desse ponto de vista, o tema é árido. Já nem sei direito o que é sinapse. Ainda que soubesse, não consigo me fixar na leitura. Atraído por essa miserável paleontologia, eis-me agora às voltas com o meu entulho de fósseis. É nisto que dá aceitar provocação a qualquer hora do dia ou da noite. Afinal, é ele quem anda com essa mania de voltar às mil insignificâncias do passado. Um simples nome de personagem irrelevante e tão antigo!

Devia ter me recusado a atender. Ou não mordesse a isca. Cá estou nesta agonia e ele há de ver que dorme a sono solto. É a minha vez de chamar. Ligo? Alta hora, cheia de ameaças. O silêncio contrasta com a atoarda dentro de mim. Vivos ou mortos, todos os ausentes exigem minha atenção. Passam voando, se atropelam e me destroçam. Vai ser difícil rearrumar as minhas gavetas interiores. Viver é esquecer, me digo. Nisto, soa o telefone. É ele!

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