Experiência antipoffiana — que é isso? A palavra “antipoffiana” deriva de Antipoff, um onomástico russo. Experiência antipoffiana é, em síntese, a vida de Helena Antipoff, uma russa que veio para o Brasil em 1929. Trocou Genebra por Belo Horizonte. E aqui, em Minas, no Brasil, realizou uma notável obra pedagógica. 1992 é o ano do seu centenário. Por isso ela está sendo lembrada e celebrada, como merece. É um exemplo pioneiro num campo em que o Brasil continua atrasado — a educação.

Mesmo que você não tenha visto o filme Mentes que brilham, direção da atriz Judie Foster, você pode saber o que é uma criança superdotada. Aliás, Tate, o garoto do filme, é um exemplo de como um superdotado costuma desorientar os adultos que o cercam. Capaz de fazer contas inimagináveis, ele frequenta um curso universitário de física durante as férias, a conselho de uma psicóloga. O superdotado, como o deficiente, ou subdotado, é um mistério que vem desafiando a ciência e a educação.

Um indivíduo muito inteligente, um gênio, terá o cérebro mais pesado do que a maioria mediana? Muita gente apostava que sim. Até hoje se relaciona cabeça grande com capacidade intelectual. No Brasil, a começar pelo Ruy Barbosa, que era cabeçudo e baixinho. Um antropólogo francês, Paul Broca, sustentou que o cérebro do superdotado é, sim, muito mais pesado, com centenas de milhões de células a mais. Benemérito e pretensioso, Broca doou o próprio cérebro a um instituto de pesquisa. Assim que morreu, em 1880, seu cérebro foi para a balança. Resultado: desmoralizou a tese do próprio Broca. O que ele tinha na cachola pesava muito pouco. Basta dizer que o cérebro de um escravo negro e analfabeto pesava bem mais do que o de Paul Broca. Aliás, isso não tem importância. André Gide, prêmio Nobel de Literatura em 1947, tinha um cérebro levíssimo — talvez o mais leve de todos os pesquisados. Pesava apenas 800 gramas.

Data do final do século 19 o estudo do fenômeno da superdotação e de seu contrário, a deficiência intelectual, que implica um sofrimento inocente, difícil de entender mesmo à luz da fé religiosa. Há várias maneiras de superdotação — o acadêmico, o criativo, o psicossocial, o psicomotor. Todos os superdotados se distinguem do comum dos mortais e podem ser úteis à sociedade, se forem encaminhados corretamente para a educação que lhes convém. Especialistas na matéria calculam que de 3% a 5% de nosso povo é de bem-dotados. Sem exagero otimista, os superdotados seriam 3% do total. Apesar de a palavra assustar um pouco, podem ser chamados de gênios.

Quantos, porém, são identificados e educados para objetivos socialmente úteis? Pouquíssimos, infelizmente, o que significa, também aí, uma das mais altas taxas de desperdício do mundo. Deitamos fora talento, massa cinzenta, inteligência e criatividade. O mais terrível é que um grande número dessas crianças morre cedo. Ou paralisadas pela miséria, pela pobreza absoluta, não têm acesso às vezes nem às primeiras letras. Há casos, muito raros, em que todas as dificuldades são vencidas e o gênio se afirma. Basta pensar em Machado de Assis. Pobre, epilético, mulato, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, órfão cedo, não teve estudos regulares e, no entanto, na adolescência já impunha o seu dom literário.

Mas um superdotado também pode se dirigir para atividades antissociais. É o caso, por exemplo, de Lúcio Flávio, que se destacou no crime. O psiquiatra Hélio Durães Alkmin o conheceu na prisão e não teve dúvida: era um superdotado. Inteligente, o menino Lúcio Flávio achava ridículo o currículo escolar. Estava muito adiante dos seus colegas, o que o levou a abandonar o estudo. Seu potencial foi aproveitado na direção errada. A superdotação, como o espírito, sopra onde quer. Não vê raça, nem escolhe meio social. Pelé, por exemplo, é um superdotado psicomotor. O meio familiar favorável e depois o futebol o encaminharam para um destino glorioso. Quantos não se perdem já na infância ou na tempestade da adolescência?

Nessa matéria de superdotação e de subdotação, temos no Brasil uma pioneira que é também uma figura apostolar. Seu nome: Helena Antipoff. Foi ela que criou a palavra “excepcional” para designar as crianças subdotadas, das quais se aproximou com o mesmo carinho com que se debruçou sobre o fenômeno da superdotação intelectual. Realizou-se de 22 de março a 28, até ontem, em Belo Horizonte, o 1° Congresso Brasileiro sobre Experiência Antipoffiana na Educação. Hoje, 29, no Complexo Educacional da Fazenda do Rosário, em Ibirité, se encerra o ciclo de estudos com uma série de festejos de que participam crianças e adolescentes beneficiados pelos frutos da obra pioneira de madame Antipoff.

Há alguns anos, escrevi o prefácio para o livro que o professor e psicólogo Daniel Antipoff dedicou à vida e à obra de sua mãe. Ele e sua mulher Ottília Braga Antipoff estão agora à frente desse congresso sobre a experiência antipoffiana. A vida de madame Antipoff, depois mineiramente chamada de dona Helena, parece um romance. Começa na Rússia dos czares, passa pelo corte, entra pela Revolução de 1917. A família se dispersa e Helena vai viver em Paris. Anda ceca e meca, até se fixar em Genebra. Aí se torna discípula favorita de Edouard Claparède. Em 1926, Genebra é um centro fervilhante de ideias e pesquisas sobre educação e métodos pedagógicos. Helena se torna assistente do mestre Claparède. Convive com Piaget e trabalha no Instituto Jean-Jacques Rousseau.

É aí, em 1928, que a vai encontrar Alberto Alvares da Silva. Leva-lhe um convite para vir ensinar por dois anos na Escola de Aperfeiçoamento de Professores, recém-fundada em Belo Horizonte. Claparède admite que a sua assistente vá por uns tempos para o Cairo, mas o Brasil é longe demais. Atlântico, trópicos, calor, cobras, escorpiões — a perspectiva é sinistra para uma jovem que tem na certa um grande destino científico. Em 1929, Daniel, seu filho, tem 10 anos. Tudo a aconselha a não deixar Genebra. Em agosto de 1929, madame Antipoff desembarca em Santos. O professor Lourenço Filho a recebe e a encaminha a Belo Horizonte, onde a acolhe o professor Mário Casassanta, inspetor geral da Instrução Pública. Francisco Campos estava em sua plena faina reformista.

Gente petulante e ambiciosa, essa mineirada que na educação sonhava com o melhor — e o buscava entre os mais altos recursos humanos. Antes de Antipoff, o professor Léon Walter tinha vindo também de Genebra. Professores mineiros iam se aperfeiçoar na Europa e nos Estados Unidos. Havia no alto da província mineira um fervor, uma vontade de fazer bem e fazer melhor. Belo Horizonte apanhou assim para sempre a ave rara, a ave russa, a ave suíça — essa flor de mineiridade que veio a ser Helena Antipoff. Sua obra é um não acabar de iniciativas. Em 1932, funda a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, que antecipava a Pestalozzi do Brasil. A criança infratora, marginal, os meninos de rua, é para aí que se encaminha a atenção de dona Helena.

No setor da educação, ela mexeu praticamente em tudo. Ligou o pensamento à ação. À educação, associou a arte. Pesquisou. Sua pedagogia funcional imprimiu novos rumos ao nosso ensino. Só agora estão saindo os livros que escreveu. São estudos que vão dos fundamentos da educação à psicologia experimental. Ninguém melhor do que ela tratou da educação do excepcional infradotado, da educação rural e da educação do bem-dotado. Pioneira da ecologia foi pioneira em tudo que tocou com sua mão de fada, sua maternal mão engenhosa e cheia de carinho. Derrubou preconceitos. Durante mais de 50 anos, trabalhou sem descanso e sempre com dor de cabeça. Sonhou até com um monumento à aspirina... Acabou uma espécie de fazendeira de crianças, essa russa de Ibirité, essa fabulosa mineira de São Petersburgo.

Ela quis agir pelo exemplo e melhorar a vida à sua volta. Não estudou e pesquisou para se afastar da vida. Estudou a realidade e apreendeu a vida. Fez de si uma doação. Deu-se aos meninos de toda casta, sobretudo aos pobrezinhos — infradotados e superdotados. Morreu em 1974, aos 82 anos. Além da obra intelectual, deixou um exemplo de ação e devotamento à boa causa. Sua vida é, sim, um romance. Seria inverossímil, se não fosse verdadeiro. Helena Antipoff trabalhou muito também no Rio e pelo Rio. Em todo o Brasil, pelas crianças brasileiras. É preciso conhecer o seu exemplo — e segui-lo, agora que se sabe que é pela educação que se chega ao desenvolvimento. E daí ao primeiro mundo. Helena Antipoff achava que o Brasil em 1930 já estava atrasado. Que diria hoje?

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