Faz 60 anos este mês esse grande pessimista de coração de menino que se chama Graciliano Ramos.

Para mim ele sempre foi “o velho Graça”. Tenho tido na minha obscura vida, mais honras que mereço: uma grande, e que especialmente me comove, foi a de ter sido seu companheiro de pensão, há uns 15 ou 16 anos atrás.

Meu quarto era de frente, na Corrêa Dutra, e dava para a ruazinha cheia de pensões, inclusive a casa das irmãs Batista. Seu quarto era o dos fundos, e dava para o zinco de uma grande garagem imensa, onde passeavam gatos vagabundos. Acho que foi Lúcio Rangel que nos levou para ali, eu com minha mulher, ele com a dele e duas meninas.

Até hoje não descobri com que artes heroicas sempre conseguimos, ainda que com atraso, pagar a pensão àquela velhinha meio pancada que só o chamava de Braziliano e nos explicava tranquilamente, quando a comida piorava muito, ou não havia manteiga no café da manhã, que fora infeliz na roleta; jogava sempre no número da catacumba do Flori, seu marido; mas o finado não dava muita sorte.

Eu ainda poderia lembrar aquele “tira” que ficou estupefato, quando começou a falar de Vitor Hugo da mesa, para brilhar na conversação, e Graciliano, chateado, decretou rispidamente: “Vitor Hugo era uma besta”; do intendente naval e sua senhora, que não era sua senhora; do Vanderlino; da alegre pensão do lado, com a bela morena que às vezes ficava nua com a janela aberta; da cerveja do botequim da esquina de Bento Lisboa.

Mas são tudo coisas vulgares em si mesmas, e ainda mais o seriam para o leitor, que as não viu, nem viveu. O que as torna grandes para mim é a sua ligação com a figura desse sertanejo amargo e amigo que saíra da cadeia de cabeça raspada, saúde estragada e sem tostão, e não se queixava, nem pedia nada a ninguém. Acordava cedo, lavava a cara quando o dia ainda estava clareando e ali no quarto onde a mulher e as filhas ainda dormiam, abria o armário de pinho envernizado, tomava um trago de cachaça, tirava da carteira seis cigarros Selma, batia-os e apertava o seu fumo até que a parte da ponta de cortiça ficasse vazia, dispunha-os na mesa, colocava ao lado seis paus de fósforos, abria o tinteiro, pegava a caneta — e lentamente, com sua letra retilínea, onde até as emendas são rigorosamente corretas, escrevia um capítulo de romance numa prosa seca, precisa, limpa e entretanto estranhamente sensível, que é das melhores que já foram escritas em língua portuguesa.

Doente e pobre, o velho Graça vai fazer 60 anos. Nossa amizade, que nenhuma diferença de política jamais afetou, sempre foi seca de expressões, econômica de gestos e palavras. Conheço o velho. Ele dirá algum desaforo amigável quando ler estas linhas. Mas não evitará o comovido abraço que lhe mando.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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