Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, na Manchete, de 26/07/1958, e no livro Ai de ti, Copacanana, Editora do Autor, 1960.

Na fazenda havia muitos patos. As patas sumiam, iam fazer seus ninhos numa ilha lá em cima. Quando os patinhos nasciam, ela descia o rio à frente de sua pequena esquadrilha amarela e aportava gloriosa no terreiro da fazenda. Apareceu uma romã de vez com sinal de mordida de criança. Um menino foi acusado. Negou. A prima já moça pegou a romã, meteu na boca do menino, disse que os sinais dos dentes coincidiam. O menino continuou negando, fez malcriação, foi preso na dispensa. Ficou chorando, batendo na porta como um desesperado para que o tirassem daquele lugar escuro. Ninguém o tirava. Então começou, em um acesso de raiva, a derrubar no chão sacos de milho e arroz. Estranharam que ele não estivesse mais batendo, e abriram a porta. Escapou com a violência de uma fera acuada que empreende uma sortida.

As primas da roça passavam no meio da boiada sem medo nenhum, mas os meninos da cidade ficavam olhando a cara dos bois e achavam que os bois estavam olhando para eles com más intenções. A linguagem crua das moças da roça sobre a reprodução dos animais os assustava.

Na outra fazenda havia um córrego perdido entre margens fofas de capim crescido. O menino foi tomar banho, voltou com cinco sanguessugas pegadas no corpo. Havia um carpinteiro chamado “seu” Roque e uma grande mó de pedra no moinho de fubá, onde a água passava chorando. Quando pararam o moinho, veio um silêncio pesado e grosso dos morros em volta e cobriu tudo menos a água chorando mais baixinho.

Gosto lento de descascar cana e chupar cana. A garapa escorrendo grossa de uma bica de lata da engenhoca. O café secando no terreiro de terra batida. Mulheres de panos na cabeça trabalhando na roça, homem doente deitado gemendo no paiol de milho. Havia um pequeno açude onde se ia de noite pegar cascudo com tarrafa. Havia um pari onde se ia toda manhã bem cedo pisar as pedras limosas sob a água tão fria, apanhar peixes.

A estrada onde se lava cavalo, a estrada úmida aberta de pouco no seio escuro da mata. A lembrança do menino que caiu do cavalo e foi arrastado com um pé preso no estribo mexicano, a cabeça se arrebentando nas pedras.

Defronte da fazenda havia uma pedra grande, imensa, escura, onde de tarde, no verão, se ajuntavam nuvens pretas e depois relampejava e trovoava e chovia com estrondo uma chuva grossa que acabava meia hora antes da hora de o sol descer e então os meninos saiam da varanda da fazenda e iam correr no pasto molhado.

A travessia do ribeirão no lugar fundo que não dava pé, debaixo da ponte, a água escura e grossa, o medo de morrer. O jacaré pequeno que uma roda do carro de boi pegou. Os bois atravessando o rio a nado, o menino a cavalo confiante no seu cavalo atravessando o rio a nado. As balsas lentas, as canoas escuras e compridas, pássaros tontos batendo com o peito na parede e morrendo, gaviões carregando pintos, a história da onça que veio até debaixo do porão.

E subir morro e descer morro com espingarda na mão, e a cobra vista de repente e os mosquitos de tarde e o bambual na beira do rio com rolinhas ciscando. Os bois curados com creolina, as vacas mugindo longe dos bezerros, o leite quentinho bebido de manhã, a terra vermelha dos barrancos, a terra preta onde se cava minhoca, a tempestade no milharal, o calor e a tonteira da primeira cachaça, e os pecados cometidos atrás do morro com tanta inocência animal.

E, de repente, uma paixão.

rubem-braga
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