Foi pegando por acaso um jornal velho que encontrei a história dessa singular comemoração do último 7 de setembro. Matou-se um rapaz de 20 anos, operário, que morava no morro da Formiga. Seria horrível dizer que foi levado por um triste gosto de trocadilho que esse rapaz escolheu para morrer ― um formicida. Bebeu o veneno, sentou-se a soleira de uma porta (da casa número 13) e morreu ali.

O bilhete assim dizia: “Hoje é um dia cheio de glórias da independência de minha Pátria. Mas eu estou muito infeliz porque “ela” me abandonou. E também porque não posso gritar, nem pedir, nem solicitar pela minha independência. Me refiro à mulher que eu tive a infelicidade de amar, e não à Pátria, que eu morro amando como bom brasileiro”.

Bem me lembro quando eu tinha 20 anos e meu amigo Afonso Arinos de Melo Franco me fez presente de um livrinho seu chamado “Carta aos que têm 20 anos”. As ideias e conselhos do livro não me impressionaram. Deles tenho apenas uma lembrança confusa; pode ser que hoje eu os achasse bons e Afonso Arinos de Melo Franco não achasse mais. As pessoas que lidam com estatística têm uma palavra para isso, que aprendi há pouco tempo: chama-se “defasagem”. Quer dizer mais ou menos, se não me engano, falta de coincidência, que é um dos males da vida. Amas uma bela mulher, ela te acha um chute, e, enfim, um dia a desamas e ela se dana a te adorar. Bem, isso é antes uma coincidência às avessas, muito vulgar no tempo, no espaço e no sentimento. Quem sabe, se o formicida falhasse, talvez já no próximo 7 de setembro iria o operário José pensar: “ora, sim senhor, e eu que fiquei tão abafado por causa daquela fuleira”.

O que não impede que já estivesse, a essa altura, jungido a outras servidões, sem coragem nem fé para soltar o seu grito do Ipiranga, mais inclinado a escolher a morte que a lutar pela independência.

Quem luta consigo mesmo cansa igual ao que luta com outro. E tem ataques de raiva com vontade de se matar e tem ataques de tédio tão desgraçado que não tem vontade de coisa alguma, nem de ser, nem de não ser. Respondemos a Hamlet: “não interessa”.

Nós outros, que atingimos a idade chamada provecta, somos quase sempre sobreviventes dos suicídios que não chegamos a fazer. O pior desses suicídios é que eles sempre matam alguma coisa dentro de nós. Era para preservar essa coisa que queríamos a morte; escolhendo a vida, nós a traímos de um jeito sutil, mas certo.

Vinte anos são uma bela idade, para a vida e a morte. Mas é inútil mandar cartas aos que têm 20 anos, como é inútil fazer desfilar pelas ruas milhares de soldados e cavalos e carros e clarins e tambores e bandeiras para alegrar os jovens corações patriotas. José rendeu homenagem à Pátria, mas talvez a alegria dessa Amada em festa tornasse mais negra a tristeza de seu coração. Assim são os moços; e eu é que não os lastimarei.

rubem-braga
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