Achei que ele estava mais gordo. 

— “Pudera! Um mês sem sair de casa”!

E enquanto esperávamos passar o caminhão em que ele, vestido como um trabalhador braçal, deveria sair da cidade cercada pelos agentes do governo, me contou a temporada que passara, escondido.

— “Fui porque não tinha um tostão no bolso, estava completamente acuado pela polícia e não sabia o que fazer. Era uma casinha na subida do morro, mas uma casa verdadeira, não um barraco de zinco. Eu nunca tinha visto o dono da casa: ele é colega de um amigo de meu irmão e se oferecera para me dar refúgio mesmo sabendo que se a polícia me descobrisse ali isso seria uma desgraça para ele e a família. Quando cheguei lá ele não estava em casa. Bati e apareceu uma negra velha, que era a empregada; disse que eu voltasse outra hora, e olhava com estranheza a minha mala. Pedi para falar com a dona da casa. Demorou muito a vir — acho que tinha me visto pela porta semiaberta. Era uma senhora de seus 30 anos, com um vestido branco, muito fresca, cheirando ao sabonete do banho. 

— Quero falar com o sr. Viana. 

— Ele não está.

Fiquei indeciso um instante: sair novamente à rua era perigoso, ainda mais com aquela mala na mão: 

— É por que ele disse que eu viesse aqui...

— Mas ele só chega às 19h. 

Eram 16h, 16h30. Certamente seria melhor que eu tivesse feito a mudança à noite, mas eu estava com um pressentimento de que aquela noite a polícia daria no quarto onde eu estava; logo que recebera o recado do Manuel com o endereço resolvera sair. Fiquei embaraçado, pensando se devia explicar alguma coisa à senhora, ainda mais indeciso devido à presença da empregada.

— Ele não deixou recado dizendo que eu vinha?

Não dissera nada. Pedi para deixar a mala, e a senhora acedeu com desconfiança. Seus olhos eram quase verdes e os cabelos eram de um negro raro; havia alguma coisa de antipatia, de desprezo em sua maneira de me tratar. Era mais bonita do que feia.

Fiquei andando por ali, voltei às 19h30. Viana viera para casa mais cedo, às 18h, exatamente por minha causa: era um homem pequeno, careca, sério. Disse-me que não fazia política mas simpatizava com a nossa atitude, que aliás nem sempre aprovava; mas achava que todo homem tem direito de ter suas ideias; essas conversas. Eu pedi desculpas pelo incômodo que ia lhe dar ficando em sua casa, tinha esperança de ser por muito poucos dias”...

— E a dona da casa continuou tratando você mal?

No dia seguinte ouvi quando ela disse ao Viana — sabia que ela estava falando alto para que eu escutasse — que aquilo era uma loucura, uma coisa mais sem jeito, aquele tipo metido em sua casa. A resposta não ouvi — a voz dele era baixa e grossa. Tratei de causar o mínimo transtorno possível ao lar: passava o dia na saleta, quentíssima, onde à noite se armava uma cama de vento para eu dormir. Aos poucos, porém, a negra velha foi me criando amizade. No fim de uma semana não posso dizer que a dona da casa também me tratasse bem, mas já me olhava, me cumprimentava, oferecia cafezinho. Aquele jeito meio antipático de falar com que me recebera não era antipatia não, comecei a pensar: era jeito mesmo. Falava quase do mesmo modo ao marido e à negra velha que, entretanto, fora sua ama em criança. Um dia ela me perguntou: “Por que o senhor tão moço, tão inteligente, metido nessas coisas, quando podia estar gozando melhor a vida, passeando, namorando”... Acho que fiquei vermelho. Será que ela notara os olhares que disfarçadamente, inevitavelmente, eu lançava à sua boca, ao seu corpo? Então eu disse para mim mesmo: “Bem, se eu fizer qualquer coisa, seja o que for, a respeito dessa senhora, da mulher desse homem, eu sou o sujeito mais desprezível, mais sem caráter do mundo”... 

Alguém bateu à porta. O caminhão o esperava. Ele pegou sua mala de foragido e, antes de partir para seu destino incerto, me pôs a mão no ombro, me olhou nos olhos com uma expressão que tanto podia ser de vergonha como de desafio, de fatalismo como de tristeza:

— “Eu era, meu velho”. — E partiu.

rubem-braga
x
- +