Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente emTraição das elegantes, de 1967, com o título "As Teixeiras e o futebol".

Com os Andrades tínhamos feito uma espécie de pacto; a gente não jogava bola defronte da casa deles, mas um pouco para cima, onde havia um muro que dava para o quintal da casa; em compensação eles deixavam a gente pular o muro e apanhar a bola quando ela caia lá. Mas o muro não era bastante comprido, e assim o nosso campo abrangia, como eu ia dizendo, algumas janelas das Teixeiras. As quais, eu também já disse, não apreciavam futebol.

Quando a gritaria na rua era maior, uma das Teixeiras costumava nos passar um pito da janela, mandando a gente embora. O jogo parava um instante, ficávamos quietos, de cara no chão — e logo que ela saía da janela a peleja continuava. Às vezes aquela ou outra Teixeira voltava a gritar conosco — começavam por nos chamar de “meninos desobedientes” e acabavam nos chamando de “moleques”, o que nos ofendia muito (“moleque é a senhora”! — gritou Chico uma vez). Mas de modo algum nos impedia de finalizar a pugna.

Uma das Teixeiras era mais cordial, chamava um de nós pelo nome, dizia que éramos uns meninos inteligentes, filhos de gente boa, portanto poderíamos compreender que a bola poderia quebrar uma vidraça. “Não quebra não senhora! Não quebra não senhora”! — gritávamos com absoluta convicção e tratávamos de tocar o jogo para a frente para não ouvir novas observações.

Um dia ela nos propôs jogar mais para baixo, então o Juquinha foi genial: “Não, senhora, lá nós não podemos porque tem a dona Constança doente”, desculpa notável e prova de bom coração de nosso time.

“Então por que vocês não jogam mais para cima”? — propôs ela com certa astúcia e falando um pouco baixo, como se temesse que os vizinhos de cima ouvissem. “Ah, não, lá o campo não presta”! — argumento, aliás sincero, de ordem técnica, e portanto irrespondível.

“Eu vou falar com papai! Quando ele chegar vocês vão ver” — gritou certa vez uma das mais antipáticas. Pois naquele momento o coronel de bigodes brancos ia chegando, parou o jogo, ele perguntou à filha o que que era, ela falou “desses meninos fazendo algazarra aí, é um inferno, qualquer hora quebram uma vidraça” — mas o velho ouviu calado e entrou calado, sem sequer nos olhar, nem dar qualquer importância ao fato. Sentimos que o velho sim era uma pessoa realmente importante e um homem direito, e superior, e continuamos nossa partida.

As queixas que algumas Teixeiras faziam em nossa casa eram muito bem recebidas por mamãe, que lhes dava toda razão — “esses meninos estão mesmo ficando impossíveis” — e uma ou duas vezes nos transmitiu essas queixas sem muita convicção. De outra feita, como a conversa lá em casa versasse sobre as Teixeiras, ouvimo-la dizer que fulana e sicrana (duas das irmãs) eram muito boazinhas, muito simpáticas, mas beltrana, coitada, era tão enjoada, tão antipática “ainda ontem esteve aqui fazendo queixas de meus filhos”.

Mamãe era a favor de nosso time; mamãe, no fundo, e papai também (hoje, que o time e eles dois morreram, esta súbita certeza, ao meditar no distante passado, tem um poder absurdo, inesperado de me comover, até sentir um ardor de lágrimas nos olhos) — eles sempre foram a favor de nosso time!

E nosso caso com as Teixeiras foi se agravando, como se verá na semana que vem.

rubem-braga
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