É preciso ler o livro Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. São quatro volumes, mas quem começa a leitura não tem vontade de parar. Nele se conta como um escritor de província — que haveria de ser um grande nome nacional — é demitido de seu lugar de Diretor do Ensino, preso, mandado de Maceió para o Recife, depois para o Rio, depois para o inferno da Ilha Grande. Por uma espécie de pudor Graciliano evita dizer o nome do responsável inicial por essa perseguição — perfeitamente injusta, pois Graciliano não tomou parte alguma no movimento de 1935. Trata-se do general Newton Cavalcanti, a cuja fogosa odiosidade ficamos devendo a existência deste livro amargo e revelador.
Citando seu nome não pretendo diminuir os merecimentos de outros grandes responsáveis por esta obra literária, como os srs. Felinto Müller, Vicente Rao e o acadêmico Getúlio Vargas. A este o autor dá uma fresca desculpa, à página 124 do 2° volume, quando se refere ao movimento organizado por José Lins do Rego para tirá-lo da cadeia. “Mas o presidente da república era um prisioneiro como nós; puxavam-lhe os cordões e ele se mexia, títere, paisano movido por generais”. Não sei se ao escrever isso, levado talvez pelo fato de seu partido ter pactuado com o sr. Vargas, Graciliano sentiu que horrível papel ele atribuía ao sr. Vargas. O “títere” não podia ignorar as torturas, torpezas e assassínios praticados; houve denúncias públicas no Parlamento, como as de João Mangabeira. E houve também comissões de mulheres que levavam ao sr. Vargas e a senhoras de sua família os relatórios sobre as infâmias executadas na prisão; a resposta sempre foi um frio silêncio. A complacência de Graciliano para com o conhecido “escritor” só serve para aumentar o peso do libelo que este livro, escrito sem o mais leve tom acusatório, representa para o “guia da nacionalidade”. Seria melhor justificar tais infâmias pelo ódio cego; o ódio pelo menos tem alguma grandeza.
O que o livro narra é desumano, é torpe. Sente-se que o autor vence sua grande repugnância em contar essas misérias e violências: em muitos casos passa por alto, evita entrar em detalhes dolorosos, como no caso de Elisa Berger. Só a sua dura honestidade o obriga a referir fatos, embora sem dar minúcias.
Este é um livro escrito com uma espécie de humildade orgulhosa; há nele coisas que superam seu valor de reportagem terrível e sua importância política: é a crispada força com que o doloroso velho Graça se debruça sobre o animal humano sujeito às piores provas, a lúcida agonia de espírito com que interroga a si mesmo para compreender os outros. Neste livro de memórias ele é, mais do que em qualquer outro, um grande escritor: um homem, com as melhores armas de seu ofício, expondo a miséria e a grandeza do homem.