Um amigo chegou aqui em casa, pegou ao acaso um volume de sermões de Antônio Vieira, viu uma frase que eu marcara a lápis, me perguntou o que eu achava da reforma ministerial. A frase dizia: “Não é nova razão de estado dos reis, para melhorar vontades, mudar ministros”. Expliquei que a marca era antiga, e nada tinha a ver com o sr. Vargas, nem com seus ministros. Que tenho pensado pouco ou nada em nosso governo e política. Deito na rede, olho as nuvens vagabundas. Nem sei mais direito seus nomes; creio que aquelas que estão paradas lá longe, branquinhas, espichadas como franjas, se chamam cirrus, e essas brancas bem gordinhas que brilham ao sol aqui mais perto e vão sendo tocadas lentamente pelo vento se chamam cúmulos. Mas não é preciso saber seus nomes: deixo-me levar pela fantasia de suas composições e vou vogando ao sabor de seus caprichos. Para ser mais exato, minha imaginação é que vai vogando: o corpo fica na rede, balançando para cá e para lá. Direis que essa minha ocupação não é construtiva; responderei que estou olhando o céu de minha pátria. Sempre é algo de nobre e talvez não seja mais inútil que ficar mirando a terra e os homens.

Pego o livro do padre Vieira e me deleito quando ele conta o amor de Santa Teresa por Jesus Cristo. Que diferença, entre o amor divino e esses outros amores profanos em que nos atolamos neste vale de lágrimas! Ouçamos a santa: “Senhor, que se me dá a mim de mim sem vós? Porque eu sem vós não sou eu: e de mim que não sou eu, que se me dá a mim”?

A isso ele chamava “divina implicação”.

Estas palavras, Santa Teresa ouviu de Cristo: “Teresa, se eu não tivera criado o céu, só por amor de ti o criara”!

E ainda estas: “Teresa, eu amei a Madalena estando na terra, porém a ti amo-te estando no céu”.

Sobre o que comenta o padre Vieira que isso é uma extrema fineza, pois “as bem-aventuranças são desamoráveis e não há maior inimigo do amor que a felicidade”. E faz suas comparações sobre o amor de Cristo:

“A Madalena, como tão amante e tão amada, estando na terra, mandava-a Cristo levar ao céu, para que fosse ouvir as músicas dos anjos: e Teresa estando na terra amava tanto e era tão amada, que estando Cristo no céu deixava as músicas dos anjos para vir conversar com Teresa na terra”.

Mas o sermão é longo, e a mim e ao leitor nos convém que a crônica seja curta. Deixemos ao padre Vieira argumentar sobre os amores divinos. Mas não convém também pensar no Ministério: deixemos essa preocupação aos ministros, aos candidatos e ao sr. Vargas, que todos vivem disso.

Eu volto à rede e às nuvens. A mais gordinha se esfiapou um tanto nas bordas e está passando sobre o meu telhado, rumo ao norte. Boa viagem, irmã; cuidado com esse vento. 

Mas ela passa, muito serena.

rubem-braga
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