“Indesejáveis, indesejáveis, qual o país que desejais”? perguntava o poeta Jorge de Lima. Nicolas Levitsky responderia, talvez, com displicência — “qualquer um”.
Pela décima segunda vez Levitsky passou ontem pelo porto do Rio a bordo do Bretagne; é um russo branco de Xangai que ficou sem nacionalidade, e que nenhum país do mundo quer receber. Tem seu beliche e tem comida, mas quando se aproxima de algum porto é trancado na cabine. Não sabemos se Levitsky praticou algum crime: parece que não, porque nenhuma polícia do mundo o reclama; nenhuma também lhe permite o desembarque. A Organização Internacional de Refugiados é responsável pela sua passagem, e já está devendo 150 contos à companhia de navegação. Aborrecido e cansado de entrevistas, Levitsky faz feito os índios: só conversa com repórter que lhe dá cigarro ou dinheiro.
Será que neste Brasil tão grande não haverá lugar para um Levitsky? Acho que todos nós nos sentimos um pouco entristecidos e vagamente culpados pelo enorme egoísmo burocrático de nossas autoridades.
Temos vontade de dizer: “Deixem o homem entrar! Afinal de contas já temos aqui tantos indesejáveis, nacionais e estrangeiros, que mais um, menos um, não vai alterar nada”.
A passagem repetida desse homem, o olhar de tristeza e de ressentimento que pela vigia de seu camarote ele pela décima segunda vez lança a nossas praias e montanhas — isso é alguma coisa que fere a nossa sensibilidade. Não dá um certo remorso repelir assim um ser humano, que nada fez contra nenhum de nós?
Sim, é verdade que as autoridades brasileiras não têm culpa. Outros países, a começar por aquele em que ele nasceu, repeliram Levitsky; e todo mês outros países o repelem quando o navio chega a um porto. Sim, não temos culpa. Ninguém tem culpa. E aí está exatamente o que é monstruoso, nesse jogo de burocracias internacionais: um homem está proibido de pisar a terra dos homens, um homem não encontra um solo em nenhuma parte deste planeta — e nem ele, nem ninguém tem culpa. Cada país empurra sobre outro a responsabilidade — ou simplesmente se fecha em copas, atrás de suas leis — e lava as mãos.
Lava — mas as nossas mãos permanecem indefinivelmente sujas. Repelimos nosso semelhante, negamos a um ser humano o direito primário de pisar no chão. Somos culpados e todo mundo é culpado. Os dois olhos ansiosos de Levitsky, brilhando na obscuridade de seu camarote, espiando o Brasil pela vigia, esses olhos de indesejável nos fazem mal, eles nos acusam e nos humilham, e nos fazem sentir medíocres, hipócritas e cruéis. Deixem o homem entrar — que mal maior ele nos poderá fazer?