Era um sonho e eu tinha o sentimento de que estava sonhando ou de que parecia um sonho ou revivia um momento antigo — talvez eu tivesse dezoito anos e descesse a rua da Bahia na madrugada escura e gelada de inverno a caminho do quartel, na minha farda de linha de tiro, na Belo Horizonte de antigamente, e senti que ela andava a meu lado, e isso era um milagre, entretanto ela conversava comigo amorosa e natural, e eu a achava singela e muito alta, não sei porque me parecia que seus seios antes não eram assim tão pequenos, redondos e sobretudo altos sob o vestido branco. Ela dava largas passadas e me segurava um braço rindo, cantando — “marcha soldado, cabeça de papel”! Seu riso era muito claro e tinha alguma coisa de riso de menina, e ela se dizia minha noiva.
A rua estava deserta, o bar Trianon estava fechado, nossos passos cantavam na calçada e ainda havia estrelas no céu. Eu tinha o sentimento vivo de que estava sendo feliz, agora ela marchava assobiando — haveria também um pedaço de lua e parecia que a lua se movia com o nosso movimento, se balançando suavemente no céu.
Olhei-a, e vi uma claridade leitosa banhando seu ombro e sua garganta; no fundo, estrelas. Apertei o seu braço no meu, alarguei as passadas, ela acertava o passo, rindo, de repente disse — “olha”!
Senti alguma coisa triste em sua voz, pressenti que ia acontecer uma tristeza, no mesmo instante senti pena de mim eu estava tão feliz marchando a seu lado, eu a sentia tão minha e achava tão justo que ela tivesse me aparecido, marcharíamos eternamente, tão jovens e amigos pelas ruas do mundo — andaríamos em Paris, em Cachoeiro, na praça de Pelotas, em Roma...
Olhei, era apenas a noite, as estrelas tremiam, em algum lugar um pássaro piava. Então me voltei e havia muitas pessoas, um sujeito do Banco da Lavoura, um colega do Tiro de Guerra, um capitão da FEB e um político do PRM e eles todos me olhavam com estranheza, as portas do Trianon estavam abertas, havia sujeitos parados me olhando, um era Edgard Andrade, outro parecia Jarbas, mas não era Jarbas do Amaral Carvalho. Perguntei — “que horas são”?
Sampaio me disse que eu estava todo sujo de batom e minha roupa estava amassada e suja, os punhos de minha camisa estavam negros. “Por que você está assim?”, me perguntavam. Eu, então, disse o nome de minha namorada, disse que eu estava com ela naquele instante mesmo, naquela noite mesmo. Então alguns riram, muitos repetiram o nome de minha namorada, alguém disse: “ela foi-se embora ontem”! — outro o olhou irritado — “ontem, não, anteontem”! Ela tinha partido para o Rio, depois iria à Europa, e fui submetido ali mesmo, sob a forte luz do sol, de encontro a um muro, a um desagradável interrogatório, havia um jovem repórter de nariz grande e óculos que tomava notas, ia sair no jornal assim: “ficou apurado que o indivíduo Rubem Braga tinha vagado pelas ruas durante dois dias e duas noites e estava maltrapilho, em situação lamentável”... Eu tive vontade de dizer àquele repórter que não era um indivíduo, eu também era jornalista, havia pessoas nos jornais que me conheciam, como Newton Prates e Otavio Xavier Ferreira.
Mas o diretor do ginásio me olhava severamente e seus óculos faiscavam de grave reprovação: “o senhor, filho do coronel Braga, que vergonha”! Senti-me infame, mas sobre todas as humilhações me deu de repente a grande tristeza, o grande desespero dela haver partido, estar tão longe, sem sequer se lembrar de mim, e desabei em desgraçado pranto.