Do naufrágio terrível da literatura e da arte na Rússia vermelha quase não escapou nada. A literatura é pífia em comparação com a antiga; a música se vê mediocrizada pela sujeição insuportável a critérios extra artísticos; pintura nunca houve da grande, e se apareceu algum talento ou gênio ele soçobrou diante do dogma do figurativismo... com figuras obrigatórias. O cinema, que parecia ser a grande arte da revolução e a princípio deu obras excelentes, e assim também o teatro, ficaram peados pela propaganda; a arquitetura, que poderia ter um grande surto em um imenso país em construção, é de uma lamentável mediocridade.

Há, entretanto, uma arte que, no dizer de observadores insuspeitos, nada perdeu a Rússia e, pelo contrário, ganhou um máximo esplendor: o balé. Foi talvez pela sugestão de Petruchka, ontem, no Municipal, que me pus a pensar nessas coisas. E fiquei imaginando que o balé é de todas as artes a que melhor pode se preservar em qualquer clima. É evidente que ele pode ser utilizado na propaganda, pelo seu imenso poder de sugestão, principalmente quando vai para o lado da pantomima. Mas o balé rigidamente clássico tem uma defesa formidável exatamente por ser a mais formal, a mais puramente formal de todas as artes.

A indefinível emoção que ele nos transmite não depende do que ele quer dizer, da anedota que ele está contando — que importância tem o nome de um pas de deux? A própria pessoa humana perde sua individualidade, se esquematiza em um número limitado de atitudes e movimentos — tende para o abstrato. Que importa se aquelas bailarinas representam cisnes de um lago, ou anjos, ou sílfides? Não são nada disso, nem mesmo são moças: são propriamente bailarinas com sua graça específica, seu mundo especial de leis rígidas, sagradas. Há uma espiritualidade que desumaniza, nessa austera disciplina do balé: mas é essa mesma disciplina que liberta na alma do espectador todas as correntes da fantasia e do sonho. Como deve ser preciosa essa arte para o povo russo, de vida tão espantosamente quadriculada por todos os controles — essa arte inocente, pura, que permite toda a evasão e realiza por instantes um outro mundo em que tudo é apenas beleza!

rubem-braga
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