Voamos sobre a Argentina e na altura de Mendoza nos dispomos a enfrentar a Cordilheira. Deixamos essa bela planura quadriculada de lavouras ricas, o avião ganha altura, começamos a sobrevoar os primeiros contrafortes. O desavisado viajante pensa que o problema será passar entre aqueles dois picos imensos que se erguem à sua frente, coroados de neve; mas o que é espantoso na Cordilheira não é apenas sua altura, que só tem maior no Himalaia: é sua largura. Passa o tempo, e continuamos a navegar sobre essas imensidões imponentes e geladas: volta-me a impressão que deixamos para trás a terra, com seus encantos e tristezas, e estamos passeando sobre a lua, misteriosa, deserta e fria. Mas há um momento em que sentimos que começa a vertente ocidental: as montanhas vão se despencando para o poente, para lá convergem, caprichosos, os fios das geleiras que irão formar rios. É com emoção que vemos outra vez sinais de vida, montinhos de cidades perdidas — e depois como um velho amigo, o mar.

Deixamos Copiapó à esquerda e abordamos o litoral na altura de Caldera. Estamos quase no limite entre o imenso deserto mineral que é a costa norte do Chile e os vales férteis do centro: logo sobrevoamos o Norte Pequeno (“Norte Chico”) e na altura em que vamos temos a sensação nítida de estar descendo pelo mapa compridíssimo do Chile, o mar a boreste e a montanha a bombordo. Mas o tempo se fecha, e é debaixo de chuva que rumamos para o sul: vamos descer em Santiago em uma tarde escura como a noite, e cada um se embrulha em seu capote: do lado de cá o inverno já começou.

Os homens da Polícia e da Alfândega são rápidos e cordiais: as garrafinhas de uísque e o delicioso Bourgogne, que tem um nome assim como Rozenblum, servido a bordo, nos fazem enfrentar com alegria esses ventos gelados. O hotel maior e mais moderno é o Carrera, mas nosso destino é o velho Crillon, que tem mais cachet santiaguense, onde a sociedade local quase todo o dia come, bebe e dança a propósito de um aniversário, um casamento, uma despedida, uma homenagem qualquer. 

Ulla, a sueca de S. Paulo que volta a Estocolmo, e teve a fantasia de vir pegar um navio em Valparaíso para atravessar o Panamá, também veio para o Crillon. Sou avisado de que devo assistir a uma conferência na universidade, e quem a faz é Jorge Mañach, o pensador cubano que é uma das eminências intelectuais da América Latina, e que veio, como eu, participar do Congresso pela Liberdade da Cultura.

Fico encantado com a notícia: mas ouvi falar de um estranho bar escuro onde se toma vinho quente e que é talvez o único prédio colonial que resta a Santiago, sempre reformada pelos terremotos. Quando o professor Mañach começa a discorrer sobre Marti, eu e Ulla, tiritantes de frio, depois de vagar algum tempo pelas ruas chuvosas, encontramos com alívio a entrada da Posada del Corregidor. E pousamos, em grande paz.

rubem-braga
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