De vez em quando a gente precisa se reler. Achei na gaveta uma crônica antiga e começo a ler:

“Quando a alma vibra atormentada às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se oprimido por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebatada pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima”.

Com este tresloucado período começava a composição “A lágrima”: não me lembro em que ano do ginásio eu estava, sei que o professor deu nota 10 e publicou nas colunas de O Itapemirim, órgão oficial do “Grêmio Domingos Martins”, do Colégio Pedro Palácios. Certamente fiquei comovido ao ver isso impresso; reli e achei bonito. Não me animo a transcrever mais para a frente: vai piorando, eu chamo a lágrima de “traidora inconsciente dos segredos d’alma” descubro que ela “amolece os corações mais duros” e também, o que é mais grave, “endurece os corações mais moles”, e acabo, na maior exaltação, dizendo que ela foi “sempre, através da história, a realizadora dos maiores empreendimentos, a salvadora miraculosa de cidades e nações, talismã encantado de vingança e crime, de brandura e perdão”.

Sim, eu era um pouco exagerado, pelo menos em palavras; hoje não arriscaria a avançar tantas coisas. Houve quem pusesse em dúvida minha autoria: tímido e malfalante, meio emburrado na conversa, eu não parecia capaz de tanta eloquência. Devia ter copiado aquilo de algum almanaque. Essa suspeita não me feriu; antes me orgulhou, e a recebi com desdém sem sequer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia escrever coisas loucas, dispunha secretamente de um imenso estoque de “corações amargurados” “pérolas da amargura”, “salvadoras miraculosas” e “talismãs encantados” para embasbacar os incréus; veriam. Uma semana depois, o professor mandou escrever sobre a Bandeira Nacional, e — dá-lhe Braga! — meti uma bossa que deixou a todos estupefatos: minha composição tinha poucas linhas, mas era uma espécie de Padre Nosso, que começava assim “Bandeira nossa, que estás no céu...” Não me lembro do resto, mas certamente era divino de engenho e arte. Não foi publicado porque O Itapemirim, depois de minha famosa “Lágrima”, foi ao fundo — com certeza naquele “oceano tumultuoso da alma dilacerada”... Mas duas meninas — glória suave! — tiraram cópias, porque acharam uma beleza. O professor, em um impressionante movimento de modéstia, declarou que nem ele mesmo seria capaz de escrever aquilo.

Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: “Amanhecer na fazenda”. Ora, eu tinha passado mais de uma semana na fazenda de tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os amanheceres da mesma. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e no fim achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como “consoladora como a esperança” combinava com “ardente como o desejo”), um burro zurrando. Depois fiz parágrafo e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro:

“Um burro zurrando escandalosamente”.

Foi minha desgraça. O professor disse que o “senhor Braga” o havia decepcionado, não tinha levado a sério seu dever, me deu 5; fez referência em aula ao “burro zurrando escandalosamente” e os outros meninos riram. Também ri, amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo.

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