O primeiro dia de setembro amanheceu envolvido na cerração, como um fruto dourado em papel de seda. Os aviões não podiam descer nem subir, os navios mugiam no mar lastimosamente, como bichos amedrontados; mas o pálido sol ganhou o favor do alígero vento, e ia ocupando as áreas de luz sobre as águas e florestas de onde ele na sua alegre arremetida enxotava as névoas matinais. Ficou apenas um alto nevoeiro aéreo sob o céu azul; que ar fino, que luz clara, que assanhada manhã com sua alegria de convalescente pela primeira vez saindo entre as árvores, e mar e morros! Minhas ilhas ressurgiram no horizonte, brilhando preguiçosas; na esquina as folhas de uma bananeira luziam de graça nova.

Era setembro, e me vi da Rua do Passeio, dava prazer andar entre as pessoas na calçada ampla, olhar as grandes árvores, parar à toa na porta dos cinemas. Depois me deu um senso de vagabundagem, transeunte gratuito, fiquei a passear olhando vitrinas, andei com Joel Silveira pela rua Senador Dantas vendo livros, camisas, televisões, quanta coisa para comprar, discos, fuzis submarinos, gravatas; não compramos nada, a não ser um bilhete de loteria de um senhor gordo, mas no fundo nada fazia falta, era bom olhar tantas mercadorias reluzentes e coloridas atrás das vidraças faiscantes e andar entre as pessoas.

Depois Joel foi trabalhar, mas se olhasse para trás veria o quanto eu emagrecia e meus cabelos ficavam negros e a cara lisa, eu era o verdadeiro estudante de 1929, vi no relógio de uma casa que ainda não eram duas horas, tirei minha carteirinha para comprar entrada com abatimento na bilheteria de um cinema. E a fita era uma fita como qualquer outra de antigamente, com Clark Gable de cara fechada tratando mal as moças, depois beijando as moças, leopardo negro, tribos de negros com lanças e batuques; saí. E o começo da tarde era estranhamente festivo, o vento palpitando nos vestidos coloridos de mulheres finas que sorriam com dentes muito brancos nas bocas úmidas. E fui andando, comi um bolo, tomei um café, senti uma grande ternura pela cidade grande onde outrora te amei tanto, tanto, oh, para sempre perdida Lenora. Lenora. E me deu uma humildade entre o povo, inteirei a entrada de um menino que queria ir ao cinema, esperei um bonde no largo da Lapa, ajudei uma senhora a subir com seu embrulho, ela agradeceu e sorriu, era cinquentona e pobre, mas seu sorriso era bom, entendia-se que ela e eu éramos cidadãos da mesma cidade, ali viajávamos um ao lado do outro, tínhamos infinitas coisas em comum. Veio o condutor, tinha cara de alemão, era gordo, mas ágil, paciente e de bom humor, todos pagavam o bonde direitinho, era a velha ordem civil e cordial. Agora a luz não mais beijava as casas de frente, em suas bocas, mas roçava apenas as faces das paredes, de lado; um homem conduzia um passarinho na gaiola dentro do bonde, todos queriam ver o passarinho, e eu me senti antigo nesta cidade, me senti tão morador, e comecei a repetir baixinho só para mim mesmo teu nome, Lenora, perdida, para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, tão ágil, batendo os saltos na calçada, andando de cabelos ao vento dentro da minha saudade, Lenora.

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