SANTIAGO DO CHILE, outubro - “O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal”.

No conto de Machado de Assis o que aconteceu nesse domingo foi que deu uma coisa em dona Severina, de 25 anos de idade, mulher do sr. Borges, e quando o moço Inácio, de 15 anos, estava dormindo a sesta da rede, dona Severina lhe deu um leve beijo na boca.

Nada de tão belo houve entre nós, neste domingo de primavera em que saímos ao campo. Havia sol, flores, brisa nas árvores e era mesmo difícil imaginar que na Terra inteira naquele instante, não fosse um domingo de sol; na Terra e por aí além, em Marte, em Vênus, em Aldebarã, que por toda parte há de haver domingos.

Notem que Machado escreveu “lindíssimo”, ele que era anti-superlativo. É que havia de ser mesmo um domingo assim, doce e perfeito, em que o simples ato de respirar e além disso não fazer nada torna uma pessoa feliz. Um puro domingo. Uns amigos Chilenos há muito me convidavam para um almoço desses. São todos engenheiros e todos estiveram juntos ― uma turma completa ― em excursão pelo Brasil, há 11 ou 12 anos atrás. Foram bem tratados, gostaram, voltaram com o ouvido cheio de canções e palavras brasileiras. Quando resolveram, aqui, comprar um sítio, de “vaquinha”, puseram nele um nome brasileiro. E de vez em quando, em companhia do mesmo professor com que foram ao Brasil, se juntam no sítio para um almoço. Comemos num caramanchão, a toalha salpicada de sol, a brisa vegetal nos abençoando. O vinho era leve, mas forte e bom, e então esses chilenos começaram a cantar em português aquele negócio “salve o lindo companheiro, se és covarde saia da mesa” etc. e cada um de nós ia emborcando seu canecão de vinho; depois cantaram de a mistura com as “cuecas” e “tonadas” da terra, velhos sambas, velhas marchas, e cânticos de estudantes brasileiros e “oh Minas Gerais, oh Minas Gerais”; a emoção e o vinho me umedeceram os olhos.

Era difícil mesmo não ficar comovido no meio desses chilenos a lembrar coisas do Brasil entre plantações de damasco, fileiras de álamos murmurantes, perante a alta Cordilheira toucada de neve. Um ítalo-brasileiro em visita cantou um samba que ele mesmo compôs e Ângela Maria gravou. Eu não cantava, porque canto demasiado mal e iria desafinar o domingo inteiro; ou melhor, apenas cantava para dentro, o que aumenta a emoção. E então de repente, no meio de tantos homens, me deu uma saudade de mulher, qualquer mulher com cabelos de mulher, pele de mulher, olhos de mulher, voz de mulher, jeito de corpo de mulher, e que, ao final, fosse mesmo mulher. Deixei a rude alegria dos homens, e me deitei na relva, de cara para o sol e cerrei os olhos, mas a escuridão era toda dourada de luz e povoada de lembrança, vontade e visão de mulher.

Ah, dona Severina, de meus domingos de sonho!

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