Como ia dizendo, fiz uma pausa, fumei um cigarro — e obedeci a um desejo pueril, mas irresistível: olhei à janela. Tenho a certeza de que sonhei com o incêndio do Vogue; não faço qualquer esforço para rememorar o sonho, mas dentro dele entrevejo, de cara lívida, o pobre Waldemar Schiller. Revivi sua aflição, seu desespero ao lado da mulher, no meio da fumaça asfixiante, subindo as escadas. Mas já não eram as escadas do Vogue, eram as deste hotel; os negros americanos gritavam desesperados e eu pensava que, como Dantinhas, devia molhar os lençóis antes de amarrá-los para sair pela janela. Estou apenas no terceiro andar; se saltar quebrarei as pernas, mas não morrerei; penso astutamente em jogar antes um colchão, depois saltar em cima dele, para amortecer o choque. Mas talvez o colchão já esteja incendiado; de qualquer modo não posso fazer nada se estou dormindo; resta-me apenas um segundo para escapar, e estou enrolado neste sono, sem me poder erguer. A lâmpada acesa dói-me nos olhos; e estão me interrogando muito, são os homens do golpe ou os homens contra o golpe, não sei: apenas sei que não me deixam ir, me torturam com essa lâmpada na cara, e o incêndio deve estar subindo as escadas.

Vejo os homens que se atiram e se esborracham. O que é preciso é fazer um completo segredo sobre a minha bursite; se descobrirem que estou sem força nenhuma no braço direito, estou perdido, não me imponho. Revejo a cara de Waldemar Schiller, mas ele está, como sempre, muito correto em sua mesa, ao lado de uma jovem que deve ser sua mulher. Ele faz menção de me apresentar a moça, mas me apresso a declarar que já a conheço, é Glorinha Neder, amiga de Rosinha. Ele me olha com certo desprezo e diz que não é, é outra moça, me diz outro nome e diz que sou um cretino por não reconhecer as pessoas. A palavra cretino me fere, hesito um instante sobre se devo revidar, tenho vontade de explicar as coisas a Fernando Ferreira para ele ver que tenho razão, mas Waldemar fala da notícia do incêndio, diz que é tudo falso, os jornais mentiram. Como jornalista sinto-me outra vez ofendido, mas digo com calma: “mas parece que houve um começo de incêndio na cozinha”...

Ele se levanta pálido, indignado, me desafia a ir ver a cozinha, não há o mínimo sinal de incêndio; mas no momento de se levantar ele se trai dizendo à moça: “venha, Glorinha”...

Então percebo que ele mente; tudo é verdade, houve o incêndio, devo acordar com urgência para não morrer sufocado. Mas ao mesmo tempo Waldemar está tão calmo e irônico em sua mesa que tenho vergonha de meu medo; preciso falar com Dantinhas, que estava no Palácio quando houve o suicídio do presidente Getúlio Vargas; ele me confirmará todos os fatos. Preciso arrumar aquela sala do escritório e verificar se tudo está certo nos arquivos, conferir o dinheiro e os recibos no cofre, tenho muita responsabilidade; dói-me o braço.

rubem-braga
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