A gripe está feroz, e o jeito é botar uma crônica antiga. A que se segue está em meu livro O homem rouco

Um casal de amigos vem me visitar. Vejo-os que sobem lentamente a rua. Certamente ainda não me viram, pois a luz do meu quarto está apagada. 

É uma quarta-feira de abril. Com certeza acabaram de jantar, ficaram à toa, e depois disseram: vamos passar pela casa do Rubem? É, podemos dar uma passadinha lá. Talvez venham apenas fazer hora para a última sessão de cinema. De qualquer modo, vieram. E me agrada que tenham vindo. Dá-me prazer vê-los assim subindo a rua vazia e saber que vêm me visitar. 

Penso um instante nos dois; refaço a imagem um pouco distraída que faço de cada um. Sei há quantos anos são casados, e como vivem. A gente sempre sabe, de um casal de amigos, um pouco mais do que cada um dos membros do casal imagina. Como toda gente, já fui amigo de casais que se separaram. É tão triste. É penoso e incômodo, porque então a gente tem de passar a considerar cada um em separado – e cada um fica sem uma parte de sua própria realidade. A realidade, para nós, eram dois, não apenas no que os unia, como ainda no que os separava quando juntos. Havia um casal; quando deixa de haver, passamos a considerar cada um, secretamente, como se estivesse com uma espécie de luto. Preferimos que vivam mal, porém juntos; é mais cômodo para nós. Que briguem e não se compreendam, e não mais se amem e se traiam; mas não deixem de ser um casal, pois é assim que eles existem para nós. Ficam ligeiramente absurdos sendo duas pessoas.

Como quase todo casal, esse que vem me visitar já andou querendo se separar. Pois ali estão os dois juntos. Ele com seu passo largo e um pouco melancólico, a pensar suas coisas; ela com aquele vestido branco tão conhecido que “me engorda um pouco, chi, meu Deus, estou vendo a hora que preciso comprar esse livro Coma e emagreça, meu marido vive me chamando de bola de sebo, você acha, Rubem?”

Eu gosto do vestido. Quanto a ela própria, eu já a conheço tanto, nesta longa amizade, em seus encantos e em seus defeitos, que não me lembro de considerar se em conjunto é bonita ou não, e tenho uma leve surpresa sempre que ouço alguma opinião de uma pessoa estranha; não posso imaginar qual seria minha impressão se a visse agora pela primeira vez. “Ele diz que eu tenho corpo de mulata, você acha, Rubem? Diz que eu quando engordo minha gordura vem toda para aqui” – e passa as mãos nas ancas, rindo. “Nesse negócio de corpo de mulata v. deve mesmo consultar o Rubem, mulher.” “Você já reparou nessa camisa dele. Fale francamente, você tinha coragem de sair na rua com uma camisa assim?”

Penso essas bobagens em um segundo, enquanto eles se aproximam de minha casa. Na tarde que vai anoitecendo tem alguma coisa tocante esse casal que anda em silêncio na rua vazia; e eu sou grato a ambos por virem me visitar. Estou meio comovido.

A campainha bate. Acendo a luz e vou lhes abrir a porta e também, discretamente, o coração. “Quase que não batemos, vimos a luz apagada. O que é que você faz aí no escuro?”

Digo que nada, às vezes gosto de ficar no escuro. “Eu não disse que ele era um morcegão?”

Sou um morcegão cordial; trago um conhaque para ele e um vinho do Porto para ela. (Maio, 1949)

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