Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 187-188.
Meu pequeno mundo vai se desgelando aos poucos sob o lívido sol da morte e a cada ano que passa é menor a ilha humana em que flutuo na glacial correnteza do tempo. Não posso ainda gemer como o poeta: "São mortos todos que amei!". Há tantos que ainda amo e ainda vivem. Mas os que me faltam diminuem a luz, a beleza e a dimensão dos meus horizontes. Alguns eram figuras tutelares, materialmente muito próximas. Outros surgiram no correr da vida, acompanharam-me por longos anos, nas paralelas da pauta de surpresas que é o nosso destino. A todos eles me ligavam laços vários, a todos eu devia um pouco da minha própria existência. Deve-se tudo aos outros, não somos nada sem eles. E se morremos imperceptivelmente com a morte de nossos próprios desconhecidos, que dizer quando morre uma dessas criaturas que se haviam tornado em marcos, em exemplos, em impressões constantes no caminho de nossa vida?
Muito menino ainda, travei conhecimento com o guarda-livros da firma Lourenço Ferreira & Cia., negociantes e comissários de café na antiga rua Marquês do Paraná. O guarda-livros era um senhor muito magrinho, de olhos e cabelos claros e se chamava Leopoldo da Câmara Genofre. Os patrões, que de ordinário tinham sempre o que falar dos empregados e debicavam especialmente os que faziam a escrita, não erguiam uma só queixa contra este e o tratavam com especial amizade e deferência. Ele era pontual, eficiente e fino de atitudes e palavras como um homem de boa raça a quem as grandezas do mundo não perturbassem o fiel exercício do seu métier. Isto a meu ver ficou bem comprovado quando lhe perguntei certo dia quais eram as relações entre ele e o Específico Genofre, remédio para coqueluche que eu vira na farmácia de meu primo Norberto. A resposta, que me deu com a maior simplicidade, me deixou encantado. Sim, era parente do inventor do tal específico, um xarope àquela época receitado pelos médicos, procurado pelo povo e que salvava as criancinhas naqueles dramáticos acessos de tosse. Era parente do benemérito cientista e não dava a isso a menor importância. Para me responder nem erguera a cabeça, já bastante encanecida, do grande livro que escriturava na grande escrivaninha, molhando a pena a cada instante no grande tinteiro de tinta azul. Para mim, aquilo era o máximo. Comecei também a respeitar seu Leopoldo e a compreender por que ele era diferente dos outros guarda-livros, do Reis, do Faria, do Rodrigues e de tantos outros. Parente dum remédio de farmácia! E remédio
tão importante! – pensava eu. Mal sabia, no entanto, em menino, o que soube mais tarde, isto é, que o nosso guarda-livros pertencia a um ramo brasileiro de gentis-homens espanhóis. Fosse porém como fosse, continuei a vê-lo e a encontrá-lo pelos tempos afora, sempre o mesmo, na mesma simplicidade, na mesma doçura e mansidão de alma, na mesma incorruptível integridade de caráter, na mesma e invariável cortesia. Era uma vida limpa, um homem absolutamente puro. Era essa coisa raríssima que é ser um homem bom, todo construído de atos e pensamentos bons. Morreu agora, um pouco antes de completar os 91 anos e entre as suas últimas palavras de agonizante estava ainda viva a fidalga gentileza: agradecia ao padre que lhe fora levar a extrema-unção. Para usar uma velha imagem, romântica mas perfeita, sua alma rolou com a limpidez e a modéstia do orvalho entre os espinhos do mundo. Mas ao se perder na terra levou consigo o perfume e o contato de uma bela floração de almas que é a sua família, criada à sua imagem e semelhança, onde se encontram tantas iguais à sua. Se o poeta Belloc, citado por Chesterton a propósito de São Francisco de Assis, não tivesse escrito: "That the grace of God is in courtesy", nós o teríamos apreendido agora nesta lição de quase um século que nos deu a vida do gentil-homem Leopoldo Genofre.