Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 67-70.

Não me recordo se já o havia visto antes. Lembro-me de que, muito menino, quando às vezes eu passava à noite pelo jardim dos macacos, um vulto se apoiava a uma parede, junto a uma porta em que, mais de perto, se podia divisar outro vulto. Era que estava em visita à sua eleita, com a qual logo depois se casou. Conversavam os dois ali no escuro até certa hora, não muito tarde, porque não seria correto e também porque no dia seguinte sempre havia tanto o que fazer.

Foi um grande excêntrico. Nunca mais o esqueceria se o houvesse visto uma única vez. Distinguia-o uma grande, bela, opulenta e bem cuidada cabeleira negra sobre a qual, naqueles bons domingos, ele costumava pôr um claro panamá ou uma luzida palheta, e nos dias de semana usava um simples boné de pano. Homem silencioso, manso de fala, de olhar e de gesto, ele passava por mim como se não visse o menino, a rua, o mundo, e fosse levado pelas imagens e pelas vozes que só ele ouvia sob a sua esplêndida cabeleira negra. Quando se casou foi morar com a jovem esposa na própria oficina. Ali, entre os pertences e utensílios de seleiro, instalou o seu lar. 

Éramos então vizinhos e eu pude acompanhar de perto a sua vida, que através de anos e anos foi sempre a mesma, recolhida, modesta, operosa, invariável. Surpreendentemente invariável. A mesma oficina em uma casa de fundos, entre a barbearia, a ferraria e o mercado, para a qual se subia por uma velha e estreita escada de madeira. O mesmo trabalho calmo e incessante, a mesma face decidida e tranquila, a mesma bem cuidada cabeleira negra. Se algumas alterações se processaram, foi como que efeito e obra demorada e natural do tempo. Pouco a pouco aquele ofício de seleiro evoluiu para o de estofador e o de fabricante de toldos. E também um após o outro apareceram os dois meninos, loiros, magrinhos, vivíssimos, que alegravam a oficina, que cresciam e acompanhavam o pai por toda parte, ajudando-o quando não estavam na escola. Eram como dois pequeninos aprendizes, aplicados em imitar tudo e em aprender em tudo o exemplo paterno, um bom, um singular e incansável exemplo.

Ele continuava um excêntrico. Mas a sua maior excentricidade era esse aferrado e absoluto amor ao trabalho. A aplicação integral de todo o seu ser e de todo o seu tempo às coisas e obrigações de seu ofício. Ultimamente já não o via mais com suas roupas de domingo, tão apuradas e limpas. O macacão de trabalho passou a ser o seu traje de todos os dias, que se assemelhava a um hábito com o qual houvesse professado nos sacramentos e na ordem do proletário. E quando muitas vezes agora, pelas caladas da noite, o encontrava na rua, estava sempre sozinho com sua escada à frente de alguma loja, montando ou consertando um toldo, enquanto a cidade descansava e dormia. Não era a necessidade que o forçava a tanto. Era a sua irresistível vocação operária, a sua têmpera de artesão, a sua alegria de homem livre mergulhando em um mundo onde ele era o único habitante, um reino regido por suas mãos que não conheciam canseiras nem relógios. Tinha a impressão de que o trabalho para ele era como a poesia, como a música, uma ocupação lúdica, um insubstituível prazer do corpo e da alma, um imutável destino. Parecia-me que ele se despojava de tudo, renunciava tudo para ser em todos os momentos a encarnação total do seu ofício.

Muitas vezes eu tive a ocasião de subir a escada de madeira que levava à oficina onde o par sonhador do Largo dos Macacos construíra o seu ninho. Também não se sabia se era um lar ou simples ateliê, tanto ali ambas as coisas confraternizavam, repartindo igualmente os móveis e as ferramentas a honra de se misturarem e de aparecerem juntos dentro da casa. Eu só encontrava no velho ninho o casal de eternos namorados. Ela agora menos ágil, de olhar menos brilhante, sofrendo essas coisas tão vagas e tão implacáveis que rondam a mulher cujos cabelos branqueiam. E ele carinhoso, desvelado, solícito. Eram ambos de duas grandes e excelentes famílias, onde se contavam nomes ilustres. Isso, no entanto, parecia não importar-lhes. Bastavam-se os dois naquele modesto alto da escada. Bastava a presença ou apenas a lembrança dos filhos que abriam os seus próprios caminhos e se tornavam dois homens de bem. O Clark servindo no exército e o Ary na sua pequena indústria.

Foi quando a hipertensão e a uremia vieram mudar as cenas daquele antigo e tímido romance, retirando da história uma das personagens. Morria a velha companheira de tantos anos da mesma luta, do mesmo convívio, da mesma pequena e tranquila oficina. E a sua face na morte era a mesma face que nas noites de noivado se voltava para a luz das estrelas. Apenas agora se fechava para sempre nas pequeninas noites que havia ao fundo dos seus olhos, fazendo uma só noite maior do que todas as outras, sob a branca nuvem de seus cabelos. Aí deve ter começado também a morte do meu amigo Florestan Bressane. Digo deve porque ele nunca me disse uma única palavra a esse respeito, sempre discreto, sempre reservado, quase ao exagero. Nem houve aparentemente em toda a sua conduta o menor sinal de que o golpe o havia ferido como feriu. Ele continuou no seu macacão e no seu boné de pano, em seu trabalho silencioso, ativo e sem horas, como fora antes. Vendo-o, não me ocorria associar a ideia da morte à pessoa dele. Tão extraordinária a sua comunhão com o seu ofício, tão difícil era vê-lo atuando ou exprimindo-se fora da castidade ou da pureza mecânica do seu labor, que eu não pensava nele como uma contingência humana e sim como perenidade e símbolo da ação humana. Ou talvez como máquina, como ferramenta, com todo o bom significado que existe nessas coisas, tanto ele concentrava em si a força, a inocência imanente das ferramentas e das máquinas.

Podia ter notado que sua farta, negra e reluzente cabeleira já não tinha nada dessas belas coisas de antigamente e que sua face murchava e empalidecia. Porém eu não notava. Esses fenômenos como que nada significavam ante a sua vitalidade, a sua inalterável constância no trabalho. Isso é que a meus olhos o engrandecia, o perenizava e o fazia um admirável excêntrico. Porque o trabalho não tem mais os seus santos e os seus heróis. Subiu ao governo, está descansando em códigos e institutos, com burocratas e capitalistas. Ou é tido como um curare social, útil em doses mínimas e perigoso em doses maiores.

Um antiquíssimo sábio do país dos mandarins dizia que a inércia das mãos é honrosa. E ao que parece é para a consubstanciação dessa honra que as massas caminham nesta hora das máquinas, das férias e das greves. Um outro sábio, ocidental, que é o inglês Bertrand Russel proclama ser um exagero o trabalho que vai além de quatro horas diárias. E o inglês é o povo mais operoso do mundo. Em alguns casos o trabalho chega mesmo a ser pejorativo e a palavra trabalhador serve para comparações achincalhantes. Quando o senador Chateaubriand quis esbagaçar o deputado Bilac Pinto, disse que ele era um trabalhador infatigável, como todos os medíocres. Não, não está certo. O trabalhador é, ou pelos menos já foi, a primeira expressão da superioridade humana.

Eis por que admirava o meu velho amigo Florestan Bressane e por que senti a sua morte, não como se poderia sentir a falta de uma criatura, mas como se deve sentir o desaparecimento de um mestre que sem aposentar-se foi até o fim ensinando a sua viva e edificadora lição de todos os dias. A morte lhe deve ter custado enormemente, não tanto porque era a morte, mas porque era descanso.

jurandir-ferreira