5 ago 1961

Anedota para uma invenção

Periódico
Manchete, nº 485
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962.

Há anos, um estranho relatório era enviado ao Conselho Federal que governa a casta Suíça: um animal desconhecido tinha sido encontrado num vagão da estrada de ferro em Zurique. O funcionário que tinha visto o “monstro” era incapaz de descrevê-lo com pormenores, o bicho correra a grande velocidade, desaparecendo sob uma pilha de ripas. Contudo, o homem falava num animal repelente, de asas compridas e escuras, dotado de antenas longas e vibráteis.

Os jornais de todas as cidades noticiaram o acontecimento alarmante. A primeira providência do governo foi recomendar calma à população. A segunda foi submeter o ferroviário a rigoroso exame psíquico. Nada se apurou de anormal: o empregado, embora emocionalmente transtornado, não apresentava nenhum sinal de sandice, nem diminuição de suas faculdades sensoriais, não bebia, fumava pouco, era viúvo exemplar, com quase trinta anos de serviços impecáveis como sinaleiro.

Afastada a hipótese da alucinação, as autoridades começaram a agir. Nomeou-se uma comissão para verificar a autenticidade do relatório e dar cabo do monstro. Cercou-se o local com policiais armados, dia e noite, prontos para qualquer surpresa.

A Suíça já começava a esquecer o ocorrido quando nova bomba estourou: uma velha solteirona em Berna vira o bicho em sua própria casa.

Foi um deus-me-acuda nos quatro cantões. O povo começou a inventar coisas. Diziam que o animal sugava durante a noite o leite das vacas; diziam que se tratava de um marciano; diziam... Um comitê político, de tendências superconservadoras, aventou a possibilidade de tratar-se dum animal feroz, obtido através de cruzamentos diversos, pelos biologistas soviéticos: em caso de guerra, milhões desses animais seriam lançados em ondas maciças sobre toda a Europa.

As silenciosas noites suíças tornaram-se ainda mais silenciosas, ameaçadas pelo abominável animal. O prestígio do Conselho periclitava. Cartazes de instituições e clubes exigiam a captura do monstro.

Os fatos andavam nesse pé quando a coisa foi vista novamente em Zurique, não longe do local onde aparecera da primeira vez. Um estudante de medicina, demonstrando invulgar bravura, perseguira o monstro com uma bengala. Mais que isso, revelando sangue frio e aplicação nos estudos, chegou a classificar o animal como um inseto. Talvez, disse ele a imprensa, se trate dum inseto tropical, portador dum veneno de efeito letal, mas não tenho dúvidas de que enfrentamos um invertebrado.

O governo respirou com algum alívio, mas não definitivamente. Se por um lado se desfaziam as lendas, reduzido o bicho a suas dimensões (do tamanho duma caixa de fósforos), a palavra INSETO veio causar no povo suíço uma repugnância indizível. As mulheres grávidas enjoavam mais, a gente toda andava com um ar emareado, o país começou a ter um cheiro mais forte de desinfetante.

E não era só isso: muito provavelmente o invertebrado (assim se exprimiam pudicamente os jornais) seria altamente venenoso.

O governo passou a expedir patrulhas armadas aos locais ermos, às habitações velhas. Todas as sábias medidas tomadas pela saúde pública encontraram no entanto um embaraço: essas sábias medidas já eram rigorosamente observadas antes da aparição do inseto.

Por fim, uma patrulha conseguiu sitiar um certo animal e prendê-lo numa gaiola de aço trançado. Sensação. Um grupo de naturalistas veio examinar o bicho e, depois de eruditas discussões, concluiu.

Concluiu que se tratava dum ortóptero da família dos blatídeos, conhecido como Periplaneta americana. Não era mortal ao homem, mas era de qualquer forma um inseto repugnante, capaz de ocasionar estragos às residências, às bibliotecas, aos arquivos etc.

A questão agora era saber de que maneira extinguir com a raça dos periplanetas dentro das fronteiras daquela esplêndida nação neutra. Informando de que o periplaneta era muito comum no Brasil, o governo suíço, tomando todas as precauções para não ofender sentimentos nativistas, consultou o cônsul do Brasil em Berna, a fim de informar-se de nossos métodos de luta contra o terrível inseto.

O cônsul agiu com discrição e sentimento pátrio. Disse, em ofício, que a barata – viu logo que se tratava de uma barata – já não constituía um problema sério no Brasil, país em extraordinário ritmo de desenvolvimento, acrescentando que, ao contrário da marcha do sol e da civilização, esses insetos se deslocavam agora do Ocidente para o Oriente.

O presidente do Conselho Deliberativo ficou pálido. Nomeou-se uma comissão mista, de químicos e naturalistas, com o fito de se encontrar com a máxima urgência um produto que exterminasse os periplanetas.

E foi assim que a humanidade inventou o DDT.

paulo-mendes-campos
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