O mundo está cheio de nós. Não pertencemos ao reino. O mundo quer ser invisível. A flor, enjoada de nosso lirismo até a raiz, pretende consumir no silêncio o nome que lhe demos. A integridade do mineral reage à nossa forma em desintegração. A alma compacta do animal se incompatibiliza com as numerosas almas transitórias de cada homem, fluidas ou pegajosas, insinuantes ou bloqueadas de súbito, mas interminavelmente excêntricas.
O mundo está cheio de nós. Vê-se à luz do sistema estelar o ridículo de nosso tempo; o curto compasso de nossos metrônomos. Quando a moabita apanhava espigas de milho no campo de Booz, as constelações viram o fulgor do atol de Bikini. Hesíodo começou a frase cujo final se cristaliza agora no inconsciente do menino poeta. A primeira roda mal se encaixou na engrenagem do computador. A pressa de nossa morte envergonha o universo; pois quem mede o que não existe será triturado desde a idade da razão.
O mundo está cheio da nossa razão. A vida é o que existe e não é razoável. Só o homem é indefensavelmente razoável na atonalidade extraordinária de tudo. Separamos o orgânico do inorgânico. O morto do vivo. O quadrado do círculo. O bom do mau. O feio do bonito. O de dentro do de fora. O alegre do triste.
O mundo está cheio de nossa alegria e de nossa tristeza. Nada pactua conosco. Estamos amputados do contexto, medindo, denominando, classificando. O universo, que antes nos hospedou com indiferença, passou ao desprezo e talvez ainda chegue à repugnância final. Nossas lágrimas não fecundam; o hálito de nosso riso não vivifica; talvez nosso cadáver interesse ao cosmo, nada mais.
O cosmo está cheio de nós. Pelo menos, por força de nossa incompetência, conseguimos ficar indesejáveis. Os ratos nos espreitam com desconfiança. O gênio humano nasce do terror. O mar talvez tente expulsar-nos das praias; o propósito do sol é extinguir-nos; um dia, não suportando mais o vento, entraremos em processo de erosão.
O boi e o cavalo estão cheios de nós, o que lhes resta de nobreza. Humaniza-se o porco em nossa intimidade e engorda. O pássaro tudo faz para tomar-se invisível na gaiola. A noite quer apagar nossos fachos; o dia quer redimir nossas galerias subterrâneas. O cipreste hostiliza nosso rito funerário. Na sala de Conselho de Ministros o arbusto está ausente. A árvore jamais nos tomaria por símbolo.
A ciência do homem parte sempre da árvore, mas da árvore abstrata dos professores. Só o louco deseja ser uma árvore. Os melhores entre nós estão mortos ou vão morrer cedo. Os piores ocupam com fervor o púlpito, a tribuna, a cátedra.
Somos os aflitos, os neuróticos, os enfermiços, os aduncos e, antes de tudo, os reenchidos de nós mesmos. A presunção, casca de nossa ferida, coça inelutavelmente. Somos os chatos da Via Láctea. E a Via Láctea, não adianta esconder, está cheia de nós.
Ah, como são humanamente áridos os nossos símbolos! Como fabricamos dia a dia a humilhação e a violência de nosso exílio. Como é agônico e mendigo nosso amor! Dividimos, para reinar, as cores do espectro, as forças da matéria, a unidade da vida: somos a aristocracia do imaginário e da moral.
O mundo está cheio de nossa moral infectada. Quem estiver satisfeito com a nossa moral, atire os últimos beijos aos nossos legisladores. Os gatos se contagiam do melhor de nós – e não prestam. Os cães se sentimentalizam ou se fazem brutais; as feras sentem nojo de nossos olhos quadriculados. O mundo quer ficar sozinho de nós. As moscas nos preferem depois do óbito.
Construímos um altar; dos restos do altar fizemos um castelo; com as pedras do castelo estruturamos a fábrica; dos despojos da fábrica talvez façamos um outro altar. Ao Supremo Tecnocrata. Nossa cultura é uma empreitada de demolições. Mas somos pobres e utilizamos o material arruinado.
O mundo aspira a uma desumanização integral de vales e montanhas e mares e ilhas e rios. Sem os homens, o mato caritativo cobrirá os nossos nomes.
O ar está cheio de nós. O fogo está cheio de nós. A terra está cheia de nós. Não demos certo. E nem chegamos a fracassar porque nós mesmos inventamos a absurda missão.
O mundo está cheio de mim. Talvez ainda me sobre, última complacência, colhida na concha trêmula da mão, um gole de água.