Periódico
Manchete, nº 845

Publicada no livro O cego de Ipanema, de 1960.

Há coisas, muitas, que a psicologia não sabe direito. Suponhamos que você esteja num décimo segundo andar em companhia de amigos, e, debruçando-se à janela, distinga lá embaixo, inesperada naquele local e no momento, a figura de seu pai, procurando atravessar a rua ou principalmente descansando num banco diante do mar. Só isso.

Por que então todo esse alvoroço que visita a sua alma de repente, essa animação provocada pela presença distante duma pessoa da sua intimidade cotidiana?

Você irá chamar os amigos para mostrar-lhes o vulto de traços fisionômicos irreconhecíveis na distância: “Aquele ali é papai. Olha lá o papai.” E os amigos também hão de sorrir, quase enternecidos, gostando um pouco mais de você, participando de sua glória, pois é inexplicavelmente tocante e glorioso ser amigo de alguém cujo pai se encontra lá no banco, longe, fora do alcance de seu chamado.

Outro exemplo: você ama e sofre por causa de uma pessoa e com ela se encontra todos os dias. Por que então, quando essa pessoa se encontra a distância, em hora desconhecida a seus encontros, na praça, na praia, voando na janela do carro, por que essa ternura violenta dentro de você? Por que, ao mesmo tempo, essa admirável compaixão?

Por que reconhecer uma pessoa ao longe, sobretudo em lugares inesperados, nos induz a um movimento interior de doçura e piedade?

Às vezes trata-se dum simples conhecido. Você o reconhece de longe no teatro, no circo, no campo de futebol, e é impossível não se infantilizar diante da visão.

Até para com os nossos inimigos, para as pessoas que nos são antipáticas, a distância, em relação ao desafeto, atua sempre em sentido inverso: ver um inimigo ao longe ou no estrangeiro é aproximar-se dele, é perdoá-lo bastante.

Mais um caso: dois amigos íntimos se veem inesperadamente de duas janelas. Um deles está, digamos, no consultório do dentista, o outro visita o escritório de um advogado no centro da cidade. Cinco horas da tarde. Lá embaixo o tráfego estridula. Ambos olham distraídos e cansados quando se descobrem mutuamente.

Mesmo que ambos, uma hora antes, estivessem juntos, naquele encontro súbito, de longe, não marcado, é como se não se vissem há muito tempo. Com todas as graças da alma desperta, com a vida em flor, eles começam a acenar-se, a dar gritos de alegria, a perguntar por gestos o que o outro faz do outro lado. Como se tudo isso fosse um mistério.

E é um mistério.

paulo-mendes-campos
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