Três sujeitos íntimos
Nicodemus, Nicomedes e Nicobar eram três irmãos. Nicodemus viu o ovo; Nicomedes viu a Eva; Nicobar viu a ave. Nicodemus era datilógrafo amador rapidíssimo; Nicomedes estudou a fisiologia dos sonhos; Nicobar aprendeu a tocar de ouvido o poeta Garcia. Nicodemus confiava mais na ira de Deus vivo que em sua misericórdia; Nicomedes andava depressa e promoveu greves de bonde; Nicobar tinha medo de cães e música erudita. Nicodemus se lembrava com terror de seu avô Nicolau, morto aos 89 anos, nu, pulando de um telhado; Nicomedes não aprendeu a dar laços de gravata; Nicobar apanhava no ar qualquer objeto que se despencasse, mas nunca respondeu a uma carta. Nicodemus, Touro; Nicomedes, Capricórnio; Nicobar, Peixes. Nicodemus não despia o casaco, dentro de casa, fumava no escuro com horror das campainhas; Nicomedes praticava o suicídio quinquenal; Nicobar se envenenava quase demais.
Nicodemus, Nicomedes e Nicobar eram três irmãos. O primeiro falava francês; o segundo falava coisas – pura, púrpura, ó grande duque imerso em cinza – para não ficar louco; o terceiro, se falava, era tocado por um demônio mudo, que o silenciava.
Nicodemus, Nicomedes e Nicobar eram três máquinas de barro, três partituras partidas, três telegramas anônimos. De um pedaço de madeira, Nicodemus compunha uma figura humana; de contrários aglutinados, Nicomedes se ria; com uma palavra embrulhada, Nicobar se afastava.
Nicodemus, Nicomedes e Nicobar eram três mastins: Sumedocin, Sedemocin, Rabocin. Três irmãos, sim. Sumedocin meditava; Sedemocin inventava; Rabocin imaginava. Gania, grugrulejava, crocitava. Vinculum, vínculo, vinco. Polypum, pólipo, polvo. Strike, struck, stricken.
Nicodemus, Nicomedes e Nicobar só tinham uma coisa em comum: o fogo profundo que acende os objetos, consumindo-os.
O pombo enigmático
Na inelutável necessidade do amor (era quase primavera), pombo e pomba marcaram um encontro galante quando voavam e revoavam no azul do Rio de Janeiro. Era bem de manhãzinha.
– Às quatro em ponto me casarei contigo no mais alto beiral, disse o pombo.
– Candelária?
– Lado norte.
– Tá, assentiu com alegria e recato a pomba.
Pois às quatro em ponto a pomba pontualíssima pousava pensativa no beiral. O pombo, o pombo não.
A pombinha, que era branca sem exagero, arrulhava, ofendida com o atraso, contemplando acima do campanário todas as possibilidades da rosa dos ventos. Mas na paisagem do céu voavam só velozes andorinhas garotas, porque as andorinhas mais velhas enfileiravam-se nas cornijas, pensando na morte que vem depois do amor, como gente fina, lá dentro, nos dias importantíssimos de missa de réquiem.
Quatro e dez. Quatro e um quarto. Uma pomba sozinha, sozinha, à mercê, quem sabe, do gavião, lendário mas possível. Sol e sombra. Como custa a passar um quarto de hora para a noiva que espera o noivo no mais alto beiral. Como a brisa é triste, inconstante. Como se humilha em revolta a noiva branca.
Ah, arrulhou de repente a pomba, quando distinguiu, indignada distinguiu, o pombo que chegava caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado, lá onde, um pouco além, gritavam esganadas as gaivotas do mar pardo do mercado. Irônica, perguntou a pomba:
– Perdeste a noção do templo?
– Perdão, por Deus, perdão, respondeu o pombo; tardo mas ardo. Olha a tarde!...
– Que tarde?
– Que tarde! Que azul! Que tarde azul!
– Mas e eu!? Sozinha aqui em cima!
– A tarde era tão bonita, disse o pombo gravemente, tão bonita, que era um crime voar, vir voando.
– Mas e eu!? Euô!?
– A tarde tão bonita, explicou o pombo com paciência de amor, que eu vim andando, que eu tinha de vir andando, meu amor.
Congo
Tua alma, minha amiga, é como a Bélgica, suavizada de canais, mas a minh’alma é como o Congo violentado, de uma liberdade malnascida. Miséria misteriosa do meu sangue, minha amada; suor negro de minha morte, minha amiga; martírio milenar de minh’alma, meu amor. A Bélgica é como a tua alma suave, mas o Congo é tumulto impenetrável, uma floresta enlameada, onde se ferem felinos noturnos à procura de carne. Estou ao Norte, ao Sul, a Leste, a Oeste, crucificado em províncias paralíticas, com os subúrbios de barro, onde se arrastam bestas abatidas, mulambos de Lisala, senzalas de Lusambo, Usumbara profunda com seu zabumba fúnebre, Inongo, Malonga – minh’alma. Mas a tua é suavizada de canais. Crimes se articulam nas aldeias petrificadas; um guerreiro de lança percorre o deserto. Mas em tua alma, minha amiga, há príncipes melancólicos pendidos para o crepúsculo. No Congo, a violência, a vingança, o ídolo vetusto que se estraçalha, o pântano morto, a febre, o voo dos corvos sobre o rio, a madrugada de sangue e carvão.
Na Bélgica, a suavidade dos canais.