Publicada, originalmente na coluna "Primeiro Plano", do Diário Carioca, de 16/12/1959, com o título "Aurora". E nos livros O anjo bêbado, de 1969, e O amor acaba, de 2013, com o título "A aurora".
Ouça a crônica de Paulo Mendes Campos na voz de Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS.
A aurora chegou tão bonita vestida de rosa, passou pela vidraça do quarto do hotel, de que não corro nunca as cortinas, passou através de minhas pálpebras, acordou meus olhos. Mas não me acordou a alma, que ficou dorme-sim-dorme-não, muito boba e semi-iluminada. Minha alma cheia de caracóis e formiguinhas.
Depois ela, a aurora, foi esvoaçar sobre os telhados e era como se aquilo estivesse acontecendo no passado e todo mundo fosse vivo. Meus olhos ficaram namorando aquela aurora doida que esvoaçava e se adelgaçava e me alienava e deixava nascer de seu ventre róseo os primeiros passarinhos matutinos.
Como são vivos e novos os passarinhos enxotados pela aurora! Como a alma de um homem é boba e vadia! Como a doçura da preguiça de uma criatura que amanhece é infinita! Como às vezes, tantas vezes, ao surgir o dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de todos os crimes, crimes não, das coisas feias que cometeu e das coisas belas que deixou de cometer. Quem nos perdoa, não sabemos. Deve ser assim: o sofrimento se junta, vai juntando dentro da gente, arranhando, lacerando, doendo, até que um dia a dor é tanta que nos pune. Então ficamos perdoados e felizes. Puros, recomeçamos de alma nova, passada a limpo como um exercício de escola.
Mas a aurora começou a sentir que ia morrer. Ficou pálida. Ficou mais pálida ainda. Um ventinho frio levantava as grinaldas da janela. As árvores começaram por milagre a dar folhas, flores e frutos. Os pássaros se coloriram. Ônibus fumacentos avançaram sobre a cidade. Homens gritavam vendendo coisas. A aurora foi ficando palidíssima e morreu, morreu diante dos meus olhos, no instante em que duas estrelinhas tímidas eram riscadas do espetáculo noturno. Amanhecia depressa demais.
Tinha chegado a hora do enterro da aurora. O coche, puxado por andorinhas de sobrecasaca, foi levado com solenidade para longe, para muito além de um monte azul-marinho e desapareceu.
Fiquei só outra vez, mas não dei a mínima. Por um momento quis que a aurora voltasse. Depois resolvi ser novamente um homem, com duas pernas, dois braços, dez dedos práticos, uma cabeça mais ou menos, mas capaz de decidir onde devo pôr os meus pés. Não é sadio ficar chorando a perda de uma aurora, mesmo uma aurora tão especial como aquela, capaz de perdoar-nos de todos os pecados.
Ergui-me da cama resoluto como um rei e fui lavar esta minha cara de português subjetivo. Escovei os dentes com um máximo de confiança. Abençoado sejas, irmão dentifrício, que me refrescas a boca habituada a venenos. Em jejum de alimento e ideias, acendi meu primeiro cigarro. Que me dá tosse. Abençoada sejas, irmã fumaça, que sobes para o céu.
Deitei-me na cama de novo, enquanto os cavalos dos poemas antigos traziam o astro-rei em atropelada brilhante. Vi-os, fortes e louros, irromper pelo céu onde tinha morrido de morte linda a aurora. Abençoado seja o Sol. Abençoado seja o dia. Abençoada seja a preguiça. Abençoados sejam os pássaros. Abençoadas sejam as criaturas. E abençoada seja a aurora. Que me perdoa de meus pecados.