Procuro um documento de que preciso com urgência. Não o encontro, mas me demoro a decifrar minha própria letra, nas notas de um caderno esquecido que os misteriosos movimentos da papelada pelas minhas gavetas fizeram vir à tona.

Isso é que dá encanto ao costume da gente ter tudo desarrumado. Tenho uma secretária que é um gênio nesse sentido. Perdeu, outro dia, cinquenta páginas de uma tradução.

Tem um extraordinário senso divinatório, que a leva a mergulhar no fundo baú do quarto da empregada os papéis mais urgentes; rasga apenas o que é estritamente necessário guardar, mas conserva com rigoroso carinho o recibo da segunda prestação de um aparelho de rádio, que comprei em São Paulo em 1941. Isso me fornece algumas emoções líricas inesperadas: quem não se comove de repente quando está procurando um aviso de banco e encontra uma conta de hotel de Teresina de oito anos atrás, com todos os vales das despesas extraordinárias, inclusive uma garrafa de água mineral? Caio em um estado de pureza e humildade; tomar uma água mineral em Teresina, numa saleta de hotel, quatro anos atrás...

Não importa que ela faça sumir, por exemplo, minha carteira de identidade. Afinal estou cansado de saber que sou eu mesmo; não me venham lembrar essa coisa, que me entristece e desanima. Prefiro lembrar esse telefone de Buenos Aires que anotei, com letra nervosa, em um pedaço de maço de cigarros, ou guardar com a maior gravidade esse bilhete que diz: “Estive aqui e não te encontrei. Passo amanhã. S.” Quem é esse “S.” ou essa “S.” e por que, e onde e quando procurou minha humilde pessoa? Não sei? Era, afinal, uma criatura humana, alguém que me procurava. Lamento que não estivesse em casa. Espero que eu tenha tratado bem a “S.”, que “S.” tenha encontrado em mim um apoio e não uma decepção – e que ao sair de minha casa ou de meu quarto do hotel tenha murmurado consigo mesmo – “o Rubem é um bom sujeito”. 

Há papéis de visão amarga, que eu deveria ter rasgado dez anos atrás; mas a mão caprichosa de minha jovem secretária, que o preservou carinhosamente, não será a própria mão da consciência a me apontar esse remorso velho, a me dizer que devo lembrar o quanto posso ser inconsciente e egoísta? Seria melhor talvez esquecer isso; e tento me defender diante desse velho que me acusa do fundo do passado. Não, eu não fui mau; andava tonto; e pelo menos era sincero.

  Mas para que diabo tomei tantas notas sobre a produção do manganês – e por que não mandei jamais esta carta tão afetuosa, tão cheia de histórias e tão longa a um amigo distante?

Meus arquivos, na sua desordem, não revelam apenas a imaginação desordenada e o capricho estranho de minha secretária. Revelam a desarrumação mais profunda, que não é de meus papéis, é de minha vida.

Sim, estou cheio de pecados; e quando algum dia for chamado a um tribunal, humano ou celeste, para me julgar, talvez a única prova a meu favor que encontre à mão seja essa pequena nota com um “pg” a lápis e uma assinatura ilegível que atesta que – se respondi com frieza a muita bondade e paguei com ingratidão ou esquecimento algum bem que me fizeram – pelo menos, Senhor, pelo menos é certo que saldei corretamente a nota da lavagem de um terno de brim à lavanderia Ideal, de Juiz de Fora, em 1936... E esta certeza humilde me dá um consolo. 

rubem-braga
x
- +