Fonte: O homem nu, Record, 1984, pp. 37-40

A moça deixou o Brasil e hoje mora em Bruxelas, graças a uma bolsa de estudos. Um amigo comum conta-me agora a sua desventura, vivida durante urna viagem a Londres. 

A moça vive modestamente na pensão de uma grega chamada Papacapopoulos, ou coisa parecida. Um dia a senhoria lhe disse que era um absurdo ela estar na Europa e não viajar: não ter ainda conhecido Londres, por exemplo, que era tão perto. Então a moça economizou um dinheirinho e comprou a passagem: a Papacapopoulos lhe recomendou a filha, que vivia lá. 

E a moça foi a Londres, toda contente. Chegou à noite, debaixo de chuva, depois de uma viagem de navio e outra de trem. Molhou-se da estação até o táxi. Já no hotel, deixou os sapatos encharcados junto do aquecedor, deitou-se e dormiu. 

Pela manhã, verificou que os sapatos estavam secos, mas estalando de tão secos: assados. Mal lhe entravam no pé. Não tendo outros, calçou-se assim mesmo, depois de muito esforço, e saiu pelas ruas, a perna dura, dando patadas no chão, à procura de uma sapataria. Encontrou uma, explicou-se como pôde, mostrando nos pés os sapatos esturricados. O homem os olhava, assombrado. Quando se dispôs a atendê-la verificou que não tinha o número que ela calçava: 33. Recomendou-lhe outra sapataria. 

Esta outra também não tinha ― e assim, sucessivamente, ela foi a sete sapatarias londrinas, sem resultado. Já se desesperava, reduzida à perspectiva de condessa descalça, única coisa que Londres lhe poderia oferecer. Acabou voltando para o hotel. Tinha os pés empolados, cheios de bolhas e de calos. Resolveu mergulhar os sapatos na banheira para ver se, molhados, recuperavam sua condição anterior. 

No dia seguinte calçou-se novamente e saiu para o passeio de ônibus, cujo bilhete havia comprado numa agência de turismo. Os sapatos, agora úmidos, começavam a se desmanchar: a sola se despregava, os pés ardiam e cada passo era um martírio. Não teve mais dúvidas: entrou na primeira sapataria e comprou outro par, o menor que encontrou. Ainda assim, eram grandes demais para ela, folgados no pé, e de salto alto. Mal se equilibrava em cima deles, tinha de caminhar arrastando a sola pelo chão, como uma patinadora. Levou mais de urna hora para chegar à estação de ônibus. O ônibus, naturalmente, já havia partido. Estava perdido, pois, o bilhete que comprara. Por sua vez, perdeu-se nas ruas de Londres à procura do hotel. 

Então se lembrou da filha da Papacapopoulos. Tomou um táxi, deu o endereço e suspirou de alívio, acariciando o pé. Encontrou uma reunião de gregas velhas, na qual se meteu sem entender uma palavra ― não logrou sequer explicar quem era, e a razão de sua presença ali. Ficou sentada, quieta no seu canto, sem saber mais o que fazer ― ao cruzar as pernas, atirou o sapato a dois metros de distância. 

Tomou coragem e resolveu sair, arrastando os pés, sem dizer a que viera. Eram nove horas da noite. Como por milagre, conseguiu orientar-se, descobrindo o caminho do hotel. Mas era uma rua escura, sombria ― um cavalheiro muito dignamente começou a segui-la como uma sombra, justamente quando pensava no vampiro de Londres. A moça apertou o passo, a sombra também. Os sapatões de salto alto a obrigavam a um passo miudinho e requebrado, que certamente ainda mais estimulavam seu seguidor. Pôs-se enfim a correr, desajeitada como um canguru, o vampiro correu atrás. Precipitou-se pela entrada do subway e tropeçando na escada, aos trambolhões, chegou à estação, entrou num trem que logo partiu em disparada, levando-a pelas entranhas de Londres. 

Tornou a perder-se, foi chegar ao hotel já alta madrugada. Dormiu apenas duas horas: era o dia de regressar a Bruxelas. Amaldiçoando a viagem, regressou. 

Ao deixar o trem na estação de Bruxelas, suspirou aliviada: mais um pouco e se livraria para sempre daquele suplício que carregava nos pés. Tomou a escada rolante ― e foi então que o salto do sapato direito se prendeu entre os degraus. 

Era um pesadelo que nunca mais chegava ao fim. Em vão se retorceu para libertar o sapato. Buscando apoio para não cair, acabou prendendo o outro pé. E lá foi ela, levada cada vez mais para cima e sem poder se mover. Quando a escada terminou, foi projetada para frente, estatelando-se no chão. Mas se livrara enfim dos sapatos, que logo se esmigalharam e desapareciam, deglutidos entre os dois degraus de aço. O mecanismo da escada engasgou e se deteve: os demais passageiros que subiam ficaram ali, parados, numa postura perfeitamente ridícula de estátuas ― o que de súbito a fez estourar numa gargalhada, ainda sentada no chão. Ergueu-se, afinal, e saiu para a rua, muito digna, caminhando descalça. Só no táxi é que se pôs a chorar, Cinderela arrependida. 

Não é de estranhar que, na pensão, quando a Papacapopoulos lhe perguntou se havia gostado da viagem ela tenha respondido em português com um palavrão.

fernando-sabino