Fonte: O homem nu, Record, 1984, pp. 119-123

Naquela manhã íamos para a cidade preocupados, cheios de compromissos e, ao contrário do que sempre acontece, não pretendíamos perder tempo pelo caminho. Meu amigo tinha de passar na Faculdade de Filosofia para transmitir um recado e, como eu dispusesse de meia hora, resolvi acompanhá-lo. Realizava-se no momento uma conferência, e a pessoa que meu amigo procurava estava lá dentro, sentada ao lado do conferencista. Sugeri-lhe que se aproveitasse do pasmo das alunas ao ouvir o homem exclamar, dedo em riste: “São Tomás de Aquino chegou a ser excomungado!” e entrasse na sala para transmitir o seu recado. Acabei deixando-o indeciso junto à porta e fui para o pátio. 

Dois meninos, sujos e descalços, jogavam bolinha de gude: um mais alto, com um sorriso a que faltavam dois dentes, e outro pequenino e mirrado, cabeça raspada e olhos postos na bola, numa obstinação de quem há de ganhar ao menos uma partida. Meu amigo, já livre de sua incumbência, se aproximou e ficamos a observar o jogo. Notamos desde logo a superioridade do jogador mais velho, de técnica apurada, maior precisão nos lances iniciais, grande senso de oportunidade nas cricadas e muita prudência no evitar as armadilhas do papão ao se aproximar da birosca. Em dado momento uma pergunta nossa sobre a variante técnica de palmo e meio em vez de um palmo, usada pelo menorzinho, atraiu para nós a atenção dos contendores. 

― Dou de lambujem ―  explicou o mais velho. ―  Ele está perdendo e disse que eu levo vantagem porque a mão dele é miudinha. Então eu dou pra ele mão e meia, mas só no batizado. Nem assim ele ganha. Botou a patinha na terra, marcou meticulosamente a distância e cricou o outro; depois mudou de ângulo por causa de um tufo de grama, papou a primeira birosca, tornou a cricar. Papou a segunda, de uma jogada direta foi espetacularmente à terceira e, já papão, deu com desprezo chance ao outro de se aproximar. O outro caiu na armadilha: em vez de tentar o batizado diretamente, quis tecar, e acabou morrendo uma vez, morrendo a segunda, para, vítima de cricada magistral, morrer definitivamente nas garras do adversário. Sem ser batizado. 

― Querem uma dupla? ― convidou-nos o vencedor, irônico, com ostensiva superioridade a tripudiar sobre a derrota do outro, que nos olhava aparvalhado. Aquilo feriu nossos brios. Aceitamos, mas sob condições: só seria permitido o galeio de recuo, quem morresse na birosca seria eliminado, não concedíamos mão e meia nem antes nem depois do batizado. Eles concordaram, depois de breve confabulação, e o maior falou para o menor: 

― Dá as riscadinhas pra eles, Zé. 

Zé meteu a mão no bolsinho da calça e tirou um punhado de bolas, de mistura com um canivetinho enferrujado, uma bala de chocolate já meio derretida e um toco de lápis vermelho. Separou cuidadosamente as riscadinhas e nos entregou. 

Foi dada a saída e desde logo se evidenciou a superioridade deles, inclusive o pequenino, que tacitamente havíamos considerado já no papo, ao aceitar o desafio. Meu amigo foi infeliz na saída, por causa de uma pedrinha que desviou o curso da bola e quase morreu na segunda birosca, praticamente antes de começar. O que seria a suprema das vergonhas. Mas uma infelicidade de seu adversário, perdendo o batizado por estupidez que ele mesmo se encarregou de amaldiçoar com um palavrão, equilibrou o jogo, mandando-me para a birosca inesperadamente, em abençoada carambola. 

Foi a vez do pequenino que, ainda pagão, deu de passagem uma fabulosa cricada no meu parceiro, atirando-lhe a bola à distância. E ainda foi à birosca. Soltei uma exclamação de entusiasmo, mas meu amigo protestou: 

― Não vale! Ele ainda era pagão! Não vale tecar sem cair antes na birosca. 

Ao que o menino mais velho redarguiu alegando, com perdão da palavra, que não valia cagar regra. 

― Não fala bobagem não, menino. A regra é essa mesmo. 

Descobrimos então, para nosso pasmo, que eles chamavam a birosca de “búlica”, ou “búrica” ― ou outro nome assim de nobre origem etimológica, influência talvez da proximidade da Faculdade de Filosofia. A palavra birosca lhes despertava mesmo sorrisos maliciosos, dando-nos a certeza de que se tratava de pornografia nova, escapada ao nosso vocabulário infantil. Havia ainda outras variantes na terminologia deles, que já não era a mesma de nosso tempo: assim, a “cricada” era para nós apenas a tecada final, que assegurava a vitória, e não todas elas, como eles vinham usando. (Entretanto, agora verifico no dicionário que nós é que usávamos o termo lídimo: “tecar” ele registra e “cricar” não registra.) 

― Então começa de novo. 

Recomeçou o jogo. Agora, depois do incidente, era a nossa honra que jogávamos. De repente vi meu amigo se transfigurar, como se a própria infância nascesse dos olhos cansados, dando-lhes aquele brilho de que só são capazes as alegrias puras. E dando-lhe jogadas magistrais. Em pouco tempo um dos adversários (o pequenino) liquidou-me, depois de armar-me cilada, o safadinho, fingindo errar a pontaria duas vezes, e morri pagão. Mas meu parceiro, papão de primeira, matou-o a mais de quatro metros, numa esplêndida jogada de galeio (com recuo). Não podia conter seu entusiasmo: 

― Sabe? Eu ainda sou dos bons! 

Por pouco não põe tudo a perder, numa jogada imprudente que o deixou perto do outro. Agora se perseguiam ao longo do jardim e o outro, já nervoso, errou e tornou a errar. Então meu amigo liquidou-o sem dó nem piedade numa cricada definitiva, que significava mais uma bola conquistada para a coleção. Ergueu-se e se tornando adulto com um pigarro, sacudiu a poeira das mãos. Os meninos o olhavam, admirados; devolveu-lhes as bolas, num belo gesto de desprendimento, não queria ficar com elas. E puxou-me pelo braço, modestamente: 

― Vamos, não é? Está ficando um pouco tarde. 

Perdêramos naquilo toda a manhã e os compromissos atrasados se acumulavam. Fiz-lhe ver minha apreensão, enquanto saíamos apressadamente, mas ele me assegurou que não tinha importância, o dia estava ganho, nossa vitória tinha sido insofismável.

fernando-sabino