Fonte: A inglesa deslumbrada. Rio de Janeiro, Sabiá, 1967, pp. 7-9
Ouça a crônica de Fernando Sabino na voz de Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS.

 

Ela carregava a pasta contra o peito, e caminhava com estudada displicência ― o que, de certo modo, disfarçava a deselegância do uniforme. Deu uma corridinha para atravessar a rua e depois se compenetrou, tentando fazer-se adulta. Logo se distraía, de vitrine em vitrine, com seu próprio corpo que passava, refletido no vidro ― às vezes estacando para olhar um vestido, uma bolsa, um sapato. Bárbaro, murmurava. 

Na esquina se deteve junto à carrocinha de sorvete: 

― De chocolate.

A mãe era capaz de dizer que não ficava bem uma moça de 13 anos tomando sorvete pela rua afora. Ainda mais nesse passinho saltitante, evitando as listas pretas da calçada, só pisando nas brancas. Pouco se importava: muita coisa que não ficava bem ela gostava de fazer. Por exemplo: tirar o sapato ali mesmo e andar descalça, dava vontade. Outro exemplo: matar a última aula, pois não era isso mesmo? 

Sorvete acabado, ficou pensando se agora não seria o caso de comprar um saco de pipocas. Enquanto decidia, olhava os cartazes de cinema. Por um instante teve a tentação de entrar. Isto é, se o dinheiro desse. Isto é, se desse tempo. Isto é, se já não tivesse visto aquele filme. 

― Amanhã vou pedir ao papai ― afirmou, como se falasse para o próprio sapatinho branco na vitrine, logo adiante: bárbaro também. O pai naquele instante na cidade, trabalhando no escritório. O que eu estou precisando é de tomar juízo, concluiu. Mas, francamente: só a última aula. Ainda mais numa tarde tão bonita como aquela. Virou a esquina e seguiu em direção ao mar. 

O mar. Ondas que se quebravam lá adiante, espumando verde. Ao longe, cruzando a barra, um navio branco. O azul do céu sem uma nuvem, a areia dourada. Foi andando devagar ao longo da praia, passo a passo, reconciliada com o mundo, leve, distraída, olhando o mar. 

De repente estacou, surpresa: num dos bancos, logo adiante, um homem também olhando o mar. 

Um homem alto como seu pai, meio curvado como seu pai, olhando o mar. Mas àquela hora, sentado sozinho num banco de praia, paletó largado ao colo, olhando o mar? 

Virou rapidamente o rosto, porque ele se movera e já podia tê-la visto. Deu-lhe as costas e atravessou a rua, aturdida com a descoberta: ele também matava aula para ficar olhando o mar. 

Antes de desaparecer na esquina, arriscou ainda um olhar furtivo, para confirmar: lá está ele. Teve a impressão de que agora ele é que virava o rosto, para não ser reconhecido. Por via das dúvidas, foi logo para casa. 

Já era tempo mesmo: chegou à hora de sempre. 

À noite, ele chegou também à hora de sempre. E durante o jantar, a uma pergunta da mulher, enfrentou a família com o costumeiro sorriso de cansaço: 

― Tive um dia atarefadíssimo, hoje. 

Olhou a filha, meio ressabiado, mas ela já lhe devolvia o olhar, com ternura. Uma ternura de cúmplice.

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