Elói era o comandante da guarda, Helvécio era o cabo da guarda, Eusébio era não sei o que da guarda e eu o soldado da guarda. Nossa missão: montar guarda. Zelar pelo bem-estar dos cavalos, forragem a hora certa, e não deixar que os soldados de verdade dessem alguma alteração. Elói me entregou um fuzil e me pôs de sentinela no portão:
― Você sabe as instruções?
― Não. Quais são?
Ele também não sabia. Fez um gesto de impaciência, disse que eu tinha de respeitá-lo porque ele era o comandante.
― Por favor, não avacalhe.
Fiquei passeando para lá e para cá, fuzil no ombro, ao som de um samba que tocava o rádio portátil dependurado na minha cartucheira. Se alguém se aproximava eu desligava o rádio, empunhava o fuzil e gritava: “Quem vem lá?” ― como via fazerem em filmes de legionários. Uma voz respondia: “O cabo Furriel” ― e o preto ia entrando com um sorriso branco na escuridão. Sempre pensei que ele se chamasse Furriel e só quando surgiu outro cabo com o mesmo nome, o que achei muita coincidência, vim a saber que Furriel era um posto militar.
*
Às onze horas começou a chover. Acabáramos de dar ração aos animais e nos recolhemos da chuva. Helvécio queria dar seu turno de sentinela debaixo de um guarda-chuva, no que foi obstado pelo nosso comandante, temendo uma incerta do outro comandante, o verdadeiro. Eusébio não queria nada senão ouvir música e tantas fez que acabou enguiçando o meu radiozinho. À meia-noite começamos a contemplar com olho comprido uma cama vazia, a única ― o resto da soldadesca ressonava tranquila, confiante na nossa vigília, esquecida dos percevejos. O comandante protestou:
― Nada disso, pessoal. Estamos aqui para montar guarda. Imagina se logo esta noite estoura uma revolução!
E nos fazia apelos dramáticos:
― Esta é a minha última oportunidade, gente. Se der alguma alteração, nunca mais termino meu curso.
À uma hora da madrugada, porém, começou a ceder:
― Podemos nos revezar: um de nós fica de guarda. Vou dar um giro por aí para ver se está tudo em paz. Depois tiramos sorte.
Mal saíra em direção às baias, nos precipitamos para a cama ― conquistada por quem chegou primeiro. Nós outros nos arranjamos pelo chão, em cobertores e mantas de cavalo. Eusébio quis se cobrir com a bandeira nacional, não deixamos:
― Isso também não.
Quando o comandante voltou do curral, já nos encontrou dormindo. Andou um pouco para lá e para cá, resmungando, quis exigir que lhe cedessem a cama ― afinal, ele era o comandante ― e acabou se ajeitando num canto, depois de acender todas as luzes do quartel, por precaução:
― Tudo em paz ― concluiu, num bocejo. E adormeceu.
*
Tudo em paz. Dorme o corpo da guarda, dormem os soldados, dormem os cavalos, todos dormem. Alguma sombra furtiva desliza pelos cantos? Os animais, um após outro, afundam os cascos no barro macio, ante a porteira do curral? Que foi que houve? Que aconteceu? Nada aconteceu, estamos dormindo, estamos sonhando com animais, e soldados, e sombras. Até os percevejos parecem estar dormindo.
Às quatro horas da madrugada sou acordado violentamente pela campainha do telefone. De um salto corro a atender ― fiel às minhas humildes atribuições de soldado raso:
― Quem?
Fico um instante na dúvida, acabo estourando:
― Ora, vá ...
Alguns colegas nossos tinham a cretina propensão a passar trotes, de algum bar da cidade, nos infelizes que eram designados para guarda ao quartel. Chamei o engraçado disso e daquilo, usei alguns palavrões, os mais conhecidos, prometi vingança ― mas ele só fazia me perguntar se eu sabia com quem estava falando. De súbito caí em mim: eu sabia! Era mesmo a voz do capitão comandante. Não tinha outro recurso senão me valer da célebre anedota:
― E o senhor sabe com quem está falando?
Como ele dissesse que não, desliguei o telefone, suspirando aliviado.
Quando telefonaram de novo, fui acordar o nosso comandante, que dormia como um anjo:
― Elói, o capitão está no telefone. Pelo amor de Deus, não diga que fui eu.
Elói correu a atender, pálido e gaguejante:
― Tudo sem alteração, meu capitão! Tudo sem alteração, meu capitão!
Não sabia dizer outra coisa, e repetiu várias vezes a frase, mas teve de render-se à evidência de que alguma alteração havia, quando o capitão berrou-lhe ao ouvido que um dos nossos soldados estava no pronto-socorro, com a cabeça quebrada, vítima de uma queda de cavalo.
― Tem cavalo solto por toda a cidade!
― Deve ser engano, meu capitão! Deve ser engano, meu capitão!
― Vou para aí imediatamente ― e o comandante desligou.
Em pânico, o comandante improvisado acordou todo o pessoal e o pôs em fila: era verdade, faltava um praça.
― Todo mundo enquadrado! O comandante vem aí.
E os cavalos? Estavam estranhamente serenos aquela noite: não se escoiceavam, não relinchavam, não davam sinal de vida. Corremos ao pasto:
― E agora, como vai ser?
Todos os cavalos, sem exceção, tinham fugido ― e eram mais de trinta. O soldado, completamente bêbado, saíra montado num deles e deixara a porteira aberta. Em pouco começaram os telefonemas: de um curral da Prefeitura, onde se recolhiam animais encontrados na via pública, avisaram que três dos nossos cavalos lá foram ter ― pediam que fôssemos buscar. Do pronto-socorro chamavam dizendo que fôssemos assistir o soldado fujão. Da polícia avisaram que havia uns cavalos soltos em plena Avenida Afonso Pena, em frente à igreja de São José ― por acaso seriam nossos? Desesperado, o Comandante Elói já dizia que não, absolutamente, não sabia de nenhum cavalo. Houve quem telefonasse dizendo que vira alguns cavalos trotando pela estrada da Pampulha. A nossa impressão era de que a cavalhada se espalhara por todo o Estado de Minas Gerais.
*
Logo o comandante irrompia quartel adentro ― o corpo da guarda veio se apresentar, soleníssimo, batendo continência. Elói teve o cinismo de dizer, seguindo as instruções:
― Aluno Elói, comandante do Corpo da Guarda. Tudo sem alteração.
Soube imediatamente que iria haver alteração no dia seguinte:
― O senhor será expulso! Não conhece o regulamento? Onde está o Risgue?
― Quem? O Risgue?
O Risgue ― R .I. S .G .U .E. ― era o livro de instruções.
― Estamos perdidos. Vamos ser expulsos, na certa.
Mas no dia seguinte, quando chegou o momento de sermos expulsos, o capitão não compareceu: sofrera um enfarte do miocárdio. E a missão de recolher os cavalos coube ao novo corpo da guarda, que era de recrutas da artilharia.