Publicada nos livros O cego de Ipanema, de 1960, com alterações e sem título, O gol é necessário, de 2000, e De um caderno cinzento, de 2015, como uma das partes da crônica 15. Também em Manchete, de 17/08/1968.
Uma revista americana descreve a vida “profissional” de Parry O’Brien, campeão olímpico de lançamento de peso. Aspeio a palavra porque os participantes dos jogos olímpicos são amadores, como costumam ser, dentro dos maiores rigores do ofício, os poetas. Mais que isso, são crentes, devotos, mentalidades de certo modo místicas dentro de esplêndidas guarnições físicas. Um homem como Parry O’Brien tem mais vida interior do que muito artista, apenas a sua vivência não se dispersa nos adejamentos incessantes do espírito, mas concentra-se em uma inspiração obstinada. Se esse tipo de recolhimento espiritual é válido, trata-se de outra coisa; para os atletas é importante, é decisivo.
De todas as modalidades de atletismo, o mais belo, o mais solitário, o mais cruel, é o salto em altura. Elevar-se do chão, lutar contra o monótono e melancólico peso do corpo, eliminar a gravidade desse corpo até o limite máximo do possível, é um dos sacrifícios mais desumanos que o homem pode exigir de si mesmo. Daí, a meu ver, ser o salto em altura o adestramento básico de todos os esportes. A carne é pesada, triste, medonhamente agarrada ao solo, resignando-se às leis da terra. Assim, o salto, imaterial, é um exercício do espírito. Só uma ansiedade indomável de pureza pode permitir que uma criatura terrena se eleve mais de dois metros no ar, para transpor o obstáculo acima de sua cabeça, acima de sua compreensão. Segue-se a queda, o retorno à terra; não importa, ele tentou o impossível e o conseguiu. Por um momento, desde o instante em que se concentrou para o salto, a besta adormeceu, e um anjo se apossou de seu corpo. É o anjo que sobe ao ar e ultrapassa o sarrafo; o homem desce de novo à terra.
Todas as formas de atletismo são alegóricas, e por isso permanecem. Apenas o salto em altura confia-nos com uma clareza elementar o seu significado.
Aos lançadores de peso chamam, nos Estados Unidos, baleia. Parry O’Brien combinando o que chama de atitude mental com aptidão física, tornou-se a maior baleia do mundo. Dedicou, antes de obter a vitória, ao lançamento de peso as vinte e quatro horas de todos os seus dias. Estudou ciências físicas, praticou infatigavelmente, usou um aparelho de gravação, pelo qual a sua voz (a voz da consciência, a voz interior, o grilo falante) o exortava com impiedade a um esforço sempre maior. Aprendeu a cavar fundo no que se pode chamar uma reserva interior de força, logrando lançar a esfera de aço a uma distância de 63 pés e duas polegadas.
E daí?
E daí dizia também o fantasma de Platão à alma conturbada de Yeats. Mas a questão pirônica não procede. O’Brien tinha para consigo mesmo um dever a cumprir, e o cumpriu. Os motivos que o levaram a desfazer-se desse peso, a lançá-lo para longe, com gestos perfeitos, e harmoniosos, a serviço de uma revolta fundamental, inseparável do ser humano, os motivos são os mesmos das demais ações que se erguem acima do comum. Todos os feitos atléticos, assim com todos os feitos do espírito, nascem da grande humilhação terrestre. Todo homem deve libertar-se; todo homem deve realizar um grande gesto; todo homem deve conhecer a profundidade e amargura de seu limite.
Não há nenhuma linha espiritual na fotografia do rosto do atleta O’Brien; seu próprio pai disse dele que “tem mais determinação do que quatro mulas”. Eu, pobre de determinação, fraco de vontade, só admiro aqueles que a possuem. Mas, como todo mundo, só continuo existindo porque ainda acredito na minha reserva interior de força.