24 ago 1968

Meu Brasil brasileiro

Periódico
Manchete, nº 853

Publicada nos livros O anjo bêbado, de 1969, e Brasil brasileiro, de 2005.

Muito parecido com o Brasil sempre fui. Meus espaços vazios. Meus contrastes contundentes. Subdesenvolvido. Subdesenvolvido. Subdesenvolvido. (Com música) Também sou virado para o mar e para a montanha, indeciso entre a gaivota e o gavião. Mato a fome com um pastel descarnado à porta da venda e às vezes me dão caviar no céu. 

Minhas capoeiras. Os galináceos magros do quintal. Acordo Paulo, São Paulo, com um furor de epístola aos laodicenses e arranha-céus eletrônicos; entardeço triste como o Piauí, com meus boizinhos bagunçados no ermo. Vendi por uma tutameia as riquezas minerais. Não consigo estabelecer a ordem. Embandeirei-me de estrelas também.

De repente sou silêncio, grande, humilde, noturno e pantanoso como o Mato Grosso. Aí me esfumo na desolação dos confins. Atravessado de rios sonolentos, deixo-me arrastar para a limpeza do oceano. As superstições abusam de mim. Ando muito, mas sem vontade. A burocracia estraga-me as tardes e contamina as disposições poéticas. Meus pulmões fatigados. Minhas baías negras de crucificações douradas. 

A pornografia não me deixa. Construo minhas Brasílias de uma hora para outra mas não moro nelas. Resido no fulgor melancólico dos cabarés, na alienação dos auditórios, onde uma rua cruza por outra, criando a perplexidade da esquina. Jamais cheguei ao fim de todos os meus cursos: não pagava a pena. Sou doce e violento como o Nordeste. Em nós o principal sempre perde para o supérfluo. Estamos tentando ainda as comunicações nestas Rondônias rudes.

Fui descoberto pela coragem dos portugueses. Minhas tribos alcoolizadas no crepúsculo. Amo a liberdade com timidez e cobiça, como se fosse um presente luxuoso demais à minha resignação. Mas um dia serei livre, ainda que pague o preço da morte. 

Sou uma Copacabana atulhada de aflições e frívola. Uma Guarujá de remorsos. Mas são sempre as águas febris que ganham de mim. Emigro muito. Volto de pé no chão, consumido pela desgraça de não possuir um endereço. Outrora, cavei as minas, garimpei nos arroios, juntei ouro e diamante, mas nunca tive jeito para as transações. Vender-se, vende-se, mas comercializar dá trabalho.

Meus pratos temperados. Minhas bebidas malfeitas. Meus pasmos sensuais. Amo o azul-turquesa. Amo o pontilhismo dos estádios. Amo os discursos patrióticos. Amo a Pátria.

Minhas revoluções sem sangue e sem vitória. Minha inveja dos cartazes clássicos da paisagem europeia. Troquei uma penca de bananas por uma fatia de maçã. 

Quem manda em mim? Quem me diz aonde vou? Quem me vende? Quem me compra? Juro que não sei: sou fraco: minha constituição não presta.

Fumo demais. Sou atrevido quando me provoco. Choro quando não é necessário. Tenho flores silvestres que ninguém vê. Faço versos nas ocasiões. Estudei o que dava para passar. Às vezes a mata pega fogo nas encostas: é a queimada. Mas nasci para dançar. 

As trilhas. Os macucos piando. Os formigões abastados. Meus ninhos de joão-de-barro. Meu instinto de pelúcias. As importâncias de quando gostam de mim. De repente posso ficar doidinho da silva. E me acabar de verde e amarelo. 

paulo-mendes-campos
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