A cena é de 1935, o cenário é o pátio do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo. Seis horas da noite. Um menino do segundo ano desce as escadas de madeira da enfermaria e dirige-se para a sala de estudos, caminhando sob as arcadas. No silêncio lunar do antigo quartel dos dragões d’El Rei ouve-se um barulho de água jorrando. Uma das bicas do pátio foi esquecida aberta. O menino vai até lá, fecha a torneira, distingue, vindo em direção oposta, os vultos do padre diretor e do professor Fontoura, sobe para a sala de estudo, abre o livro e entra na sua solidão. 

Depois das duas horas de estudo da noite, havia reza na capela, com bênção do santíssimo ou não, seguida de pequena prática edificante, chamada “o boa-noite”. 

O boa-noite de hoje é do próprio Padre Chico Lana, o diretor, ao qual chamávamos, em razão de seu vício de prosódia e Leitmotiv disciplinar, de “boa-oldem”. 

Hoje contarei dois episódios, começou o diretor, que ilustram dois caracteres diferentes, opostos. O menino bom e o menino mau. Pela semente se conhece a árvore. Bons frutos e maus frutos. 

O padre contou o primeiro episódio: pela manhã, notara que uma das árvores do pátio tinha sido entalhada a canivete. Um nome de mulher. Maltratando a planta e mostrando-se preocupado com frivolidades mundanas, um aluno, um membro da nossa comunidade, revelara-se duplamente mau e pecaminoso. Não daria boa coisa, caso não se emendasse a tempo. 

Fiquei firme no meu canto e enquadrei-me entre os maus, os pecadores. O criminoso, o frívolo, era eu. 

Veio o segundo episódio. O bem, a ilustração da virtude, a boa semente, o coração generoso, o homem verdadeiro com um futuro garantido no bom caminho.

O “boa-oldem” fez então um breve e bonito panegírico dum menino que atravessara o pátio para fechar uma torneira. Menino bom, menino de alma limpa, autor dum gesto que ele recomendava como exemplo ao resto do corpo discente. E o diretor não poderia imaginar que esse anjo chegava naquele momento à primeira conclusão grave de sua vida. O homem é bom e mau. Triste e humano, disse Bilac. O diretor não poderia imaginar que o demônio e o anjo eram o aluno 49. 

*

Não tem sido muito diversa a minha vida ao longo de todos esses anos. Humildemente, vim praticando o bem que tocou meu coração tão restringido de virtudes. Tenho, tenho fechado torneiras. Nos hotéis, na casa dos outros, nos restaurantes, nos prédios públicos, no Brasil e no estrangeiro, tenho fechado torneiras em quantidade, ajudando a poupar um pouco da água deste mundo. E quero advertir os espíritos de inclinações simbolistas que digo isto sem segundas intenções, que sou realmente, e não alegoricamente, um grande fechador de torneiras, desses que procuram um pedaço de barbante, quando é este o caso. 

Relevem-me por favor a mediocridade da virtude. Fechar torneiras, confesso, satisfaz a uma exigência modesta mas profunda de meu ser. 

Há anos, quando iniciaram no Rio uma campanha para que todos os habitantes fechassem torneiras, fiquei contente e superior: desde 1935 que eu fazia isso sem alarde. E continuaria recatadamente a praticar esse bem humilde, não julgasse oportuno, neste alvorecer de novo ano, conclamar as pessoas ruins como eu, as pessoas que não foram escolhidas para distribuir na terra benefícios maiores, as pessoas que não se emendaram a tempo: fechemos torneiras, irmãos.

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