14 jul 1962

Difícil e enjoado na vida

Periódico
Manchete
Publicada também no livro Colunista do morro: uma experiência com ácido lisérgico, de 1962

Difícil e enjoado na vida, repito, é que a gente precisa ficar muito atento, muito atento, para não confundir as coisas; não confundir o verde com o vermelho; não confundir o acelerador com o freio; não confundir a direita com a esquerda; o nº um com o n° dois (só para mulheres); é preciso ainda não confundir alhos com bugalhos; não confundir David Garnett (autor de A mulher que virou raposa) com Arnold Bennett; não confundir Norma Benguel com Elizabeth Gasper; não confundir Jesse Owens (atleta americano, quatro medalhas de ouro em Berlim, 1936) com John Owen (também atleta americano, mas do século passado); não confundir T.S. Eliot (americano que vive em Londres) com Elliot Paul (americano que viveu em Paris); não confundir aspidistra (uma planta) com a serpente que matou Cleópatra; houve um Mário de Andrade no Brasil e há um Mário de Andrade na África; não confundir Sucre, capital da Bolívia, com La Paz (sede do governo boliviano); também não confundir Amsterdã (capital da Holanda) com Haia (sede do governo holandês); não confundir retificar com ratificar; não confundir ruço com russo; não confundir Manuel Bandeira (poeta pernambucano) com Manoel Bandeira (desenhista pernambucano); não confundir Chagall com Segal; não confundir Julien Tanguy (revolucionário, grande figura, pintado por Van Gogh) com o pintor surrealista Yves Tanguy; não confundir García Lorca (poeta espanhol) com o García Lopes ou López (que não sei quem é); não confundir o pintor Monet com o pintor Manet; não confundir vultuoso com vultoso; não confundir o Germano com o gênero humano; não confundir o escritor Kafka (tcheco da literatura alemã, autor do personagem K.) com o professor K. Koffka (tratadista da Gestalt); nos países de língua francesa, não confundir (eu confundo muito) poussez com emportez; nos de língua inglesa e nos aviões, não confundir push com pull; nos de língua alemã, não confundir eingang com ausgang; mas também não confundir Leônidas da Silva com o Leônidas que jogou no América, dito da Selva; não confundir Strauss (Johann, autor de valsas vienenses) com Strauss (Richard, alemão, autor da ópera Dom João); nem confundir Handel (que morou em Londres) com Haydn (que esteve em Londres); não confundir a ópera Parsifal com o Parsifal do Ceará; houve um William Croft, que foi organista na abadia de Westminster, e houve um William Crotch, um organista, que foi professor de música em Oxford; não confundir impotável com imputável; nem mugir com mungir; nem dispensa com despensa; não confundir zarabatana com barbatana; nem barbatana com bar bacana; não confundir intemerato com intimorato; nem cadafalso com catafalco; não confundir um verso do A.F. Schmidt (“se chegasse à tua casa, o tímido olharia”) com esta hipótese terrível: se chegasse à tua casa o time do Olaria; também não confundir Alá Batista com “alá o Batista”; não confundir, por favor, Pedro Tchaicovsky com Gilberto Trompovsky; não confundir North Dakota com South Dakota (ambos ao norte dos Estados Unidos); como não confundir North Carolina com South Carolina (ambos ao sul dos Estados Unidos); não confundir crown (coroa real) com wreath (coroa de defunto); nem confundir René Lalou com Jean Cassou; não confundir a rua Gago Coutinho (que fica em Laranjeiras) com a rua Sacadura Cabral (que fica no centro da cidade); não confundir, em espanhol, langosta (gafanhoto) com langosta (lagosta), para não fazer como eu, que traduzi certa feita: “um bando de lagostas voava sobre o deserto”; não confundir chief (patrão) com thief (ladrão), ainda que seja verdade; não confundir o poeta Afonso Félix de Sousa com o poeta Moacir Félix de Sousa; nem o José Geraldo Santos Pereira com o José Renato Santos Pereira (isto é impossível, pois são gêmeos, e eu os conheço há vinte anos e os confundo); não confundir cricket com croquet; nem croquet com croquette; não confundir, enfim, quem puder, Jean Racine com Louis Racine, Antoine Arnault com Daniel Arnault, Samuel Butler (do século XVII) com Samuel Butler (do século XIX), José Feliciano de Castilho com Antônio Feliciano de Castilho, Francisco Garcia Calderón com Ventura Garcia Calderón, D.H. Lawrence com T.E. Lawrence, Fernando Namora com Joaquim Namorado, F. Schlegel com W. Schlegel, Silva Alvarenga com Silva Dias, Silva Dias com Silva e Orta, Silva e Orta com Silva Jardim, Silva Jardim com Silva Lisboa, Silva Lisboa com Silva Ramos, Silva Ramos com Silva Ramos, pois há dois, um filólogo e um poeta. Por essas e por outras é que a gente fica doido ou doudo.

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