Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, pp. 381-382. Publicada, originalmente, no periódico A.B.C., de 24/08/1918 e, posteriormente, no livro Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 264. 

Antônio Torres, o curioso Antônio Torres, fez há dias na Gazeta de Notícias uma crítica acerba e justa às senhoras – eu ia dizer nossas – brasileiras que se desvelam em cuidados para as “caminhas brancas” não sei de onde e para a Cruz Vermelha da Sérvia, esquecendo-se de que há entre nós muita criança necessitada de que elas não cuidam e em prol das quais não fazem o menor movimento de caridade.

Sei bem que essas senhoras – que eu ia dizer nossas – não têm absolutamente noção de que haja, entre nós, pequenotes necessitados.

Essa coisa de beneficiar é daquelas da mais alta elegância que só se encontram em Paris e alhures. Isto é, em terras do máximo chic, para as quais estão voltados os olhos de todos que se julgam mais ou menos europeus.

O Brasil é uma terra de selvagens e de negros e essa gente, quando tem filhos, não merecem eles a piedade de ninguém.

Swift propôs, há alguns anos, que se fizessem, de semelhantes crianças, da Irlanda, botões dos seus ossos e salsichas das suas carnes.

Se não fosse eu receber a acusação de plagiário, pediria que se seguisse o conselho de Jonathan, deão da catedral da Irlanda, para os indígenas e desgraçados que andam por aí na miséria, à espera de uma Cruz Vermelha... brasileira com tango do Alberto de Queirós e outros números divertidos.

Não sei por que, apesar de todo o meu pessimismo, de todo o meu desgosto, de todo o ódio que juro ter, eu julgo essas senhoras e essas moças muito boas.

É conversar quatro palavras com umas e com outras, o sujeito mais feroz, ou que se quer fazer feroz como eu, fica logo desarmado.

Mas, qual é a razão por que elas não encaminham a sua bondade ou desejo de serem boas para o caminho eficaz e natural da Caridade?

Não quero dizer aqui o motivo; não quero ser brutal; não quero nem de leve que essas senhoras se sintam magoadas comigo.

Não tenho medo de inimigos; mas só os quero entre homens. Mulheres nem como amigas, nem como inimigas. São sempre prejudiciais. Quero-as de longe sem nenhuma relação de dependência com elas. Fazem sofrer muito e eu já estou farto de sofrer.

O que eu julgava de útil, de bom, era que essas senhoras, moças e meninas, não fossem atrás das prédicas do senhor Ataulfo de Paiva.

Não há quem, como eu, estime o senhor desembargador Paiva. Quando o vejo nas ruas, com as suas botinas de aríete do tempo das guerras púnicas; quando o vejo no barbeiro, sofrendo uma barbeação que é quase uma operação de apendicite – eu penso cá de mim para mim: que pena eu não ser como o doutor Ataulfo! Eu estaria feliz!

Mas, logo em seguida, me chegam tantos ecos de sofrimentos, tantas dores ocultas, tantas confissões de desgraças, que eu penso de mim para mim: é muito bom que eu não seja como o doutor Ataulfo!

O desembargador quer ou propôs a “canalização da beneficência”. Isto é a esmola a anjinhos ou coisa semelhante.

Ele quer a caridade sem se ver o sofrimento; quer a caridade à burguesa.

A minha opinião é que todos nós, no nosso círculo de relações, temos muita gente que atender com a nossa generosidade, com a nossa caridade – essa grande e estranha flor do nosso coração. Não precisa de Cruzes Vermelhas; não precisa de repartições cristãmente burocráticas, para dar a sua esmola.

É dá-la quando podemos e... quando não podemos.

Essas senhoras, para dar um óbolo, em favor de feridos, ou coisa que valha, da Grande Guerra, não tinham necessidade de tanto alarde, para mostrar que têm bom coração. Não era preciso que os jornais soubessem. Não era preciso que o Binóculo desse notícia.

O que era preciso era dar. Bastava.

Vou lhes contar uma história que talvez lhes cause ensinamento.

Isto foi quando eu tinha seis anos. Meu pai tinha enviuvado e nós morávamos em uma casa muito pobre na Rua do Riachuelo.

Todos os sábados, eu pedia a meu pai um tostão para dar a uma pobre velha que me ia esmolar, à porta da minha rótula paterna.

Dei-lhe sempre a esmola e ela me beijava. Desses beijos, tenho eu ainda grandes saudades...

Ela era velha, esquálida; mas, assim mesmo, ainda e sempre me lembrei dos seus beijos...

Ah! A caridade, sem Cruzes Vermelhas.

lima-barreto