Ainda não deixei de pasmar-me com o que vi. Era sábado, por volta de onze horas, íamos de automóvel pela praia de Copacabana, rodando devagar. Além do controlador mercantil, dono do carro, estava comigo o professor-assistente de técnica de orçamento.
A manhã era perfeita entre as mais perfeitas que o Senhor reservou para Copacabana. Manhã dessas em que me vem sempre a vontade de ser abastado sitiante em Ribeirão Preto ou Alegrete, e de estar no Rio para umas férias em um dos hotéis envidraçados da Avenida Atlântica. Manhã amorável que nos suaviza o ridículo de morar em uma cidade sem transporte, sem árvores e sem espaço. A viração marinha corrigia o ardor do sol.
E por ser tão bonita a manhã, arrepiamos o caminho de casa, na altura do posto 6, fazendo a volta. O professor de técnica de orçamento nos contava uma história sobre um canário chapinha que tinha caído no alçapão, quando ele era menino.
― Até hoje sou doido por um canário chapinha.
Ele acabara de falar isso quando uma freada brusca nos sacudiu com turbulência dentro do automóvel. Olhei meu amigo ao volante para saber o que se passava, e surpreendi em seu rosto, que eu tanto conheço há longos anos, uma máscara nova. E como não me sinto capaz de descrever a expressão de sua face, passo logo adiante. Ele disse:
― Estou vendo.
Assim, “estou vendo”, sem complemento e sem reticências, como um cego que recuperasse a vista de repente. Olhamos para onde os seus olhos fugiam, e também vimos. Vimos a aparição candente caminhando em direção contrária à nossa. Três pares de olhos ficaram vendo.
Devia ter dezesseis para dezessete anos. Alta, loura, olhos claros, bela, terrivelmente bela.
Seu maiô de duas peças era cor de laranja. A pele de um dourado irrepreensível talvez indicasse a mistura de uma raça nórdica com outra morena. Os sapatos altos a faziam mais alta e, contraditoriamente, íntima e hierática. As formas, estas eram coisa de Deus. E como não é mais possível existir hoje em dia uma criatura tão definitivamente bela sem que os meios modernos de publicidade espalhem pelos quatro cantos do mundo a sua imagem, era de supor-se que, menina-e-moça quando se deitara na noite anterior, havia desabrochado mulher, e não se apercebera de que inaugurava um mundo novo quando saíra para a praia naquela manhã. Pois a displicência com que conduzia o seu corpo musical era absurda e a tornava mais forte, mais espetacular, mais devastadora.
Nós víamos, nós não éramos cegos. E aquele que conduzia o carro fez com ele uma curva ousada e começou a seguir a estrela da manhã. E a estrela caminhava ao lado de uma senhora de certa idade, possivelmente sua avó, e de um menino, possivelmente seu irmão. Mas aí notamos que as rainhas andam à frente de um séquito, e não apenas nós a acompanhávamos, humildes e deslumbrados, mas outros automóveis deslizavam em seu encalço, tudo dentro de um respeito que se parecia ao medo, tudo em silêncio, não fossem os alaúdes dos carros que forçavam a passagem para conseguir um lugar mais favorável junto ao fenômeno. E aqueles que não dispunham de viaturas, marchavam a pé, à frente, à retaguarda, ao lado, guardando uma certa distância, na calçada, na praia ou na rua.
O cortejo foi aumentando de maneira fabulosamente rápida. Sim, o acontecimento era de fábula. Ela caminhava entre a velha e a criança, olhava para os lados e para trás com temor, embora todos nós a pressentíssemos intangível. Janelas de apartamentos se abriam, faces consumidas pelo cotidiano se iluminavam de súbito com a visão.
No posto 6, a situação ficara insustentável. Já éramos legião. A velha, assustada, passou a puxar a estrela pelo braço. Dirigiram-se ao Clube dos Marimbás, onde, depois de conversar com um homem, refugiaram-se. Mas quando ela apareceu lá em cima, na sacada, e foi contemplar os longes do mar, alguém do cortejo começou a bater palmas. E todos o imitaram, e os automóveis buzinaram alegremente, e o mar bramia, e a viração despenteava as amendoeiras, e Copacabana, tão habituada a ver as mulheres mais bonitas da Terra, registrou mais esse milagre de beleza surpreendente.