coluna: "Primeiro Plano". Publicada no livro O cego de Ipanema, de 1960.
A meu avô Cesário, devo este horror pelos cães, o pescoço musculoso, a implicância com os países nublados, o riso acima de minhas posses e o pressentimento de uma velhice turbulenta.
A João Antônio, uma ironia tamisada de ternura, e a ideia cinematográfica de uma tarde vendo um homem passar a cavalo por uma estrada poeirenta de antigamente, meu bisavô.
A meu avô português, os desregramentos da sensibilidade, lágrimas grotescas de homem, a repentina desgraça que me visitou altas horas da madrugada em um aeroporto estrangeiro.
A dona Augusta, as primeiras letras sem dor.
A meu tio Ezequiel, ter demonstrado a possibilidade de um suicídio oportuno.
A minha mãe, o manejo do revólver, o gosto do claustro, o recolhimento na hora dos crepúsculos matutino e vespertino, o entendimento da passarela entre o efêmero e o símbolo.
A Marcus Aurelius Antoninus, devo a maneira e a figura destas meditações, e a ideia elementar de que os homens são feitos de cooperação, como as arcadas dentárias.
A Herodes (W.H.A.) devo a necessidade dramática de justificar-me e o ódio a superstições.
A meu pai, os artelhos nodosos, os teoremas abstratos do espírito, o dom de ver, comparar e concluir, timidez diante do dinheiro, hábito de verduras e leite, e o sentimento, incomodamente impreciso, de um som de flauta que se esvai nunca sei onde.
Ao professor Roberval ter tido a paciência de ensinar-me frações, quando as matemáticas já me pareciam intransponíveis.
Ao professor Amarante, a desmoralização da oratória, a cautela com os advérbios de modo, o comedimento das virtudes, a técnica de abrir garrafas de vinho.
A antepassados obscuros, devo a obscuridade, mensagem esvaída, mogno mudo, língua presa na boca.
A minha ama preta Hermengarda, devo a certeza (extraordinário alívio) de que somos todos iguais e a humanidade se modela.
A um escritor inglês de segunda ordem, a ideia de que a poesia é um problema de modulação.
A meu inimigo de Figueira do Rio Doce, a circunspecção diante da morte.
Devo aos poetas de todos os tempos, a sobrevivência da minha alma; aos franceses, a ordenação das mais altas hierarquias semânticas; aos espanhóis, a guitarra tocando em duas cordas o diálogo entre o erudito e o popular, inextricáveis; a portugueses e brasileiros, o sabor; aos alemães, o ter me tornado quem sou; aos melhores britânicos, as muitas flores que desabrocham nas trevas, despercebidas.
A Baudelaire, em cujo túmulo depositei uma rosa, a fulgurância de seu raciocínio, a elegância corrosiva de seu sentimento trágico; a Shakespeare, a iniciação a todas as formas; a Joyce, integritas, consonantia, claritas.
A minha tia-avó Gertrudes, um remédio infalível contra soluços.
A Mallarmé, o axioma cruel e radioso da frustração artística.
Ao doutor Relling, o entendimento precoce da mentira vital.
A Pablo Picasso, a reacomodação do nervo ótico.
A minha tia Virgínia, já extinta, o interesse pela forma dos seixos, cacos de vidro, galhos ressequidos, carapaças de crustáceos e outros objetos sólidos, sem contar a noção da unanimidade que a todos envolve, passageiros que somos.
A madame Sophroniska, meu interesse pelo câncer que devora a constelação das crianças.
A João Bicanca, ter dito que o acrobata não cai jamais no picadeiro.
A Constanze, ela mesma, seus olhos largos e claros, a alegria de ter podido investigar, através dessa criatura sem qualquer languidez, até que ponto o senso mais urbano da ordem e do dever pode coexistir com um espírito essencialmente demoníaco.
Aos mestres russos, tudo o que aprendi; a Stendhal, devo o sentimento de minhas carências; a André Gide, um chemin bordé d’aristoloches.
A minha avó Margarida, a maneira leve de pisar e fechar portas.
A Minas Gerais, a minha sede, o jeito oblíquo e contraditório, os movimentos de bondade (todos), o hábito de andanças pela noite escura (da alma, naturalmente), a procrastinação interminável como um negócio de cavalos à porta de uma venda.