4 out 1979

João Teodorinho, um herói postalista

 

Fonte: Da quieta substância das coisas. São Paulo, IMS, 1991, pp. 317-318.

Escrevi ao meu amigo Plínio Doyle, diretor da Biblioteca Nacional e da Casa de Rui Barbosa, dizendo haver recebido os livretos que ele me mandara pela mala postal. E logo estremeci ao tomar consciência do que escrevera. Hoje ninguém diz mala postal, estas palavras acodem a mim que sou um antigo, pensei. E raramente se está sorrindo a essa ideia de antigo. Porém, a mala postal continuou a insistir sob a forma de um passado, as velhas imagens voltando ao vídeo da memória.

Quando menino conheci a mala postal em pessoa na figura de João Teodorinho, também chamado João Correio, que fazia diariamente a lombo de animal, entre a Vila dos Poços e o Distrito de Campestre e vice-versa, o transporte da correspondência, que ia em saco de lona, marcada com a lista verde e amarela, a rubrica do Correio Nacional, saco esse que se fechava com ilhós de cobre onde passava a corrente com cadeado. O percurso era de sete léguas, ninguém ousava dizer 42 quilômetros. Ia serra acima, serra abaixo, serra do Selado, serra do Pião, serra da Roseira, serra do Milho Verde, na única estrada feita com a ferragem das rodas de carro de boi e pelo casco das tropas cargueiras.

Lembro-me de João Teodorinho no armazém de meu pai, em cujo rancho de tropeiros ele pousava e donde partia, ainda escura a madrugada. E o via sempre ― ou era esta a sua imagem mais impressionante ― encharcado de chuva, o chapéu negro e o poncho pardo gotejando, as botinas e as perneiras enlameadas. Naquele tempo chovia muito. Ou era o jererê peneirado que durava meses ou eram torós, as tormentas com trovoadas, as trombas d’água, as enchentes derrubando pontes e a estrada um charco e um atoleiro só, do começo ao fim, onde o cavaleiro não viajava se não conhecesse palmo a palmo, como João Correio conhecia.

Era homem muito magro, alourado, pálido, com pequenos olhos estrábicos e cuja narrativa de suas aventuras diárias de sete léguas os caixeiros do armazém às vezes levavam em troça. Eu não, que sempre o ouvia com um certo assombro. Do que ele nunca se esquecia era de louvar a lealdade e a resistência das duas pequenas, arrepiadas e barrigudas montarias que o serviam e o ajudavam a honrar no cumprimento do dever. Todos confiavam nele, reconheciam a sua integridade, que testemunhavam dando-lhe encomendas e negócios junto a fazendeiros ou vendeiros do seu caminho, incumbências de que ele não tirava nenhum lucro. Era um homem corajoso e rijo. Para isso o governo lhe pagava os setenta mil réis por mês. Não sei se pelo menos houve por estes Brasis um outro João Teodorinho, heroico estafeta a cavalo, modelar e bravo serventuário dos Correios. Se a sua sepultura existe em qualquer parte, é sobre ela que deponho este ramo de saudades. Não há mais João Teodorinho. Ainda haverá mala postal?

jurandir-ferreira