Publicada, posteriormente, em Manchete, de 22/08/1970, com o título "Marcha para o oeste".
A ideia brotou e floriu na copa de um pé de manga-rosa do quintal de Jujuba Pinta Roxa, que não se incluía no plano; as reuniões diárias na árvore eram secretas.
― Eu levo a machadinha, o trabuco e uma faca inglesa alinhadíssima, disse Georges; mochila, temos duas.
― Ninguém pega nós, suspirou Aristeu, lambuzando-se de manga.
― Eu arranjo o meu cofre do banco, roubo o revólver de mamãe e compro os alimentos na conta de papai, informou Paulo.
Andavam os três por volta dos doze anos e, enfarados da civilização, iam para Goiás, viver com os índios.
A compra da munição, para o revólver e as espingardinhas de cano de guarda-chuva, exigiu um estratagema; quando o vendedor da Casa Sales pensava em negar-lhes a encomenda, Paulo perguntou a Georges:
― Seu pai vai caçar só com isso de pólvora e bala?
— Não, bobo, isso é só pra inteirar.
O comerciante foi na conversa. O material ia sendo recolhido no porão da casa de Georges e, no dia marcado para a fuga, ali se encontravam as mochilas, uma lanterna, as armas, brancas e de fogo, umas poucas latas de salsichas e muitas de goiabada, marmelada, pêssegos em calda, ameixas, frutas cristalizadas, cocada baiana, um queijo ou dois. Os recursos em dinheiro orçavam em 32$400, arrancados ao cofre a golpes de machadinha. Os cantis já cheios, Georges foi buscar o justamente famoso facão inglês, quando se ouviu lá fora uma voz:
― Aristeu, papai tá te chamando.
Estavam descobertos. Mas o irmão mais moço de Aristeu foi embora quando Georges o ameaçou:
― Ô Armênio, dá um jeito de cair fora, senão agora mesmo minha irmã te toca.
Caminho desimpedido, correram com a tralha até alcançar a estrada do Acaba Mundo. O homem que lhes barrou a marcha depois de quinze minutos (eles sabiam) era um investigador:
― Quem são vocês? Onde vão assim?
― Escoteiros. Vamos na frente, para acampar.
― Escoteiros?
― Do Guia Lopes.
O polícia se satisfez e recomendou-lhes sorrindo:
― Cuidado, por aí tem onça.
— Ah, é? ― Comentaram em coro todos os três.
Do alto de uma colina, avistando-se toda a Belo Horizonte, adeuses nada católicos foram feitos ao Colégio Arnaldo, onde dois deles cursavam a primeira série.
A viagem continuava quando um sujeito mal-encarado reconheceu em Aristeu o menino que mexia com ele na cidade, e quis ir à forra; as três armas foram apontadas ao mesmo tempo:
― Se avançar, morre.
Mais adiante agarraram três cavalos e, fazendo rédeas dos cintos, seguiram a galope pelo pasto, até que os animais, a bufar, tropeçavam de fadiga. Essa carreira em pelo, quando a fuga se achava em seu apogeu e o ânimo dos três aventureiros ainda não se enfraquecera, resume toda a embriaguez da experiência. Três crianças fugiam para muito longe, dispostas a enfrentar feras e bandidos, libertas de professores, do tédio do asfalto, de pai e mãe, donas de si mesmas e do mundo. A vivência era insubstituível e completa. Naquele momento não eram crianças, eram... sei lá o que eram. O certo é que as coisas a seguir desandariam depressa, como se a carreira nas montarias roubadas fosse o fim verdadeiro da aventura.
A água acabou e veio uma sede ardente; os caminhos se multiplicavam, e era preciso escolher um entre todos, embora desconhecessem qual deles levaria mais depressa a Goiás; a saudade de mamãe os confrangia; rastos de cachorro no pó lhes pareciam rastos de onças esfomeadas; às vezes, a trilha se estreitava por dentro de capoeiras cheia de estalidos inquietantes; mais horrível ainda, ia escurecendo, coisa ruim em si mesma, sem falar na hipótese de almas penadas e mulas sem cabeça.
Mas o pior, o pior de tudo mesmo, é que ninguém podia confessar o seu medo e seu desejo de voltar, trair os juramentos da mangueira, pois mostrar-se covarde é ainda mais cruel que o sentimento da covardia.
Voltaram, entretanto, voltaram porque no alto de um outeiro, ao meio, e não ao lado da vereda, apareceu uma grande cruz, branca e enfeitada de flores. Isso também já era demais.
Numa palhoça iluminada à lamparina foram recebidos por um velho manso, que lhes disse:
― Entrem, meus filhos; aposto que fugiram.
― Somos escoteiros.
― Vocês não me enganam.
Revelaram tudo. O velho lhes serviu café ralo em canecas, eles lhe deram um pedaço de queijo.
― Vocês vão dar uma estopada, meninos; o mundo é grande e tem gente ruim. Antes de chegar a Paraopeba, tiram tudo de vocês.
Os três deliberaram em voz baixa e comunicaram ao velho que iriam voltar:
― Ah, eu sabia, fazem muito bem.
― Como é o nome do senhor?
― Cardoso. Vendo lenha e banana na cidade.
Conversaram até tarde, dormiram no paiol em colchões de palha de milho, os trabucos sob a cabeça, tomaram café com a aurora, presentearam o bom Cardoso com várias latas de conservas, despediram-se com uma salva de tiros e pegaram o caminho de volta, transfigurados. Parecia que a população toda da cidade os esperava. Ao chegar em casa, antes de ter uma conversa de menino para homem com o pai, Paulo foi tomar um banho.