Sula me chamo. Nasci e cresci nas regiões pedregosas, nos casarões de altas paredes e janelas baixas, nas ladeiras de lajes lisas, nos frios largos ao sol de agosto, na penumbra perfumada do incenso das igrejas, nos pequenos cemitérios fechados pelos muros úmidos, no trato dos entregadores de leite e bananas enganchados, enormes, nos burrinhos amestrados.
Cresci com anáguas de cambraia, e babados, e tranças, e amarelinhas, e lições de piano, e sei mover os bilros para fazer as rendas. Não me vissem no confessionário: aos domingos, comungava sem pecado. Mas ao meio-dia, reunida com os meus em torno do frango com quiabo e angu, deixavam-me beber um copo de vinho misturado com água e açúcar. Então, o pressentimento de um futuro para o meu corpo fazia o meu coração apressar-se debaixo dos pequenos seios que, na balança das mãos, pesavam túrgidos como duas pombas prestes a voar.
Namorei na janela, à noite, ele em pé na calçada. Depois, de mãos dadas, sentados os dois na sala de visitas. “Está namorando firme”, respondiam minhas amigas a quem perguntasse por mim. “Está quase noiva”, diziam elas. Mamãe fazia bolos de laranja e mil docinhos, por ser de opinião que homem se prende pela boca. Perdia-se ele na noite, e ainda assim seus sapatos percutiam nas lajes de pedra: eu estava apaixonada. Beijava-me as mãos na plataforma da estação, com os seus belos cabelos negros partidos ao meio, e logo surgia à janela do trem, para um adeus de mãos e olhos tristes que só terminaria na primeira curva dos trilhos. Escrevia cartas — um maço de cartas cuidadosamente amarradas num laço de seda — que eu respondia passando batom nos lábios, imprimindo-os no papel sob minha assinatura, e acrescentando uma pétala de rosa vermelha. Estava noiva.
O padre que me batizou, casou-me. Seguimos em lua de mel para Poços de Caldas. Correu tudo agradavelmente, sem dificuldade de espécie alguma, e, em Belo Horizonte, fomos encontrar o nosso lar preparado pelas duas famílias em comum acordo: numa pequena rua, uma casinha pequenina pintada de novo, com os móveis no lugar, as roupas na gaveta, a toalha de renda sobre a mesa de jantar, e na cozinha — ó alegria! — minha babá, já soprando as brasas no fogão, para nos servir o primeiro café fresco da vida conjugal. Nasceu ali o nosso primeiro filho.
Os negócios de meu marido expandiam-se, e assim compramos um apartamento no Rio de Janeiro, para onde nos transferimos. Formávamos um casal jovem e simpático, com um pequeno, porém agradável, círculo de relações. Enquanto ele trabalhava, eu me dedicava a obras filantrópicas. De nós três, o mais feliz era o Júnior, que vivia à beira do mar. Logo lhe daríamos uma irmãzinha.
Sula me chamo. Aos 26 anos de idade, após uma tremenda crise de consciência, conheci outro homem. Para minha surpresa, não senti remorsos. Tornei-me até mesmo melhor esposa, mais compreensiva e paciente, o que me valeu inesperada gratificação: passei a dirigir o meu próprio automóvel. Outros homens conheci, da mesma forma isenta de drama. Mais tarde compreenderia que na verdade não conhecera nenhum; nem sequer meu marido.
À sombra do guarda-sol, deitei-me na areia para ler um livro. A leitura me causou uma inquietação indefinida. Fechei o livro, estendi a toalha ao sol, sobre a areia quente, e deitei-me ali, com óculos escuros. Adormeci. Então a maré, que havia refluído após a ressaca da véspera, avançou estrondeante sobre o meu sono. Uma chusma de estrelinhas úmidas invadiu-me. Assim, despertei aniquilada, enquanto a maré outra vez refluía. Toda a superfície do meu corpo, estilhaçada em miríades de regiões tácteis, estalava; minhas narinas fremiam como as da égua a galope, meu coração galopava, eu me exauria e inflava de sensações, ao mesmo tempo.
Novamente a onda quebrou, enviando-me agora a mansa mensagem de sua espuma, que me cobriu por completo. Eu era o quê, naquele instante? Um ser trêmulo! Eu era um ser trêmulo!
Descansei, descansei. Depois me levantei, pacífica, e pude contemplar pela primeira vez a verdadeira fisionomia do mar. E desde então, se acaso alguém me pergunta: “És feliz?”, respondo simplesmente: “Não: bravia”.